domingo, 11 de outubro de 2009

O DIREITO DE EXPRESSÃO É O DEIREITO DE ESCUTAR?

Em qua, 30/9/09, José Ernesto Alves Grisa escreveu:



De: José Ernesto Alves Grisa

Assunto: Eduardo Galeano

Para: josegrisa@yahoo.com.br

Data: Quarta-feira, 30 de Setembro de 2009, 13:03

O direito de expressão é o direito de escutar?

       A tecnologia põe a imagem, a palavra e a música ao alcance de todos, como nunca antes ocorrera na história humana, mas essa maravilha pode se transformar num logro para incautos se o monopólio privado acabar impondo a ditadura da imagem única, da palavra única e da música única. Ressalvadas as exceções, que afortunadamente existem e não são poucas, essa pluralidade tende, em regra, a nos oferecer milhares de possibilidades de escolher entre o mesmo e o mesmo. O texto é de Eduardo Galeano.

Eduardo Galeano

Texto publicado no livro "De pernas pro ar" (LPM)
“Estamos informados de tudo, mas não sabemos de nada”

       No século XVI, alguns teólogos da igreja católica legitimavam a conquista da América em nome do direito da comunicação. Jus communicationis: os conquistadores falavam, os índios escutavam. A guerra era inevitável justamente quando os índios se faziam de surdos. Seu direito de comunicação consistia no direito de obedecer. No fim do século XX, aquela violação da América ainda se chama encontro de culturas, enquanto continua se chamando comunicação o monólogo do poder.

       Ao redor da Terra gira um anel de satélites cheios de milhões e milhões de palavras e imagens, que da terra vêm e à terra voltam. Prodigiosas engenhocas do tamanho de uma unha recebem, processam e emitem, na velocidade da luz, mensagens que há meio século exigiriam trinta toneladas de maquinaria. Milagres da tecnociência nestes tecnotempos: os mais afortunados membros da sociedade midiática podem desfrutar suas férias atendendo o telefone celular, recebendo e-mail, respondendo ao bipe, lendo faxes, transferindo as chamadas do receptor automático, fazendo compras por computador e preenchendo o ócio com os videogames e a televisão portátil.

       Vôo e vertigem da tecnologia da comunicação, que parece bruxaria: à meia-noite, um computador beija a testa de Bill Gates, que de manhã desperta transformado no homem mais rico do mundo. Já está no mercado o primeiro microfone incorporado ao computador, para que se converse com ele. No ciberespaço, Cidade celestial, celebra-se o matrimônio do computador com o telefone e a televisão, convidando-se a humanidade para o batismo de seus filhos assombrosos.

       A cibercomunidade nascente encontra refúgio na realidade virtual, enquanto as cidades se transformam em imensos desertos cheios de gente, onde cada qual vela por seu santo e está metido em sua própria bolha. Há quarenta anos, segundo as pesquisas, seis de cada dez norteamericanos confiavam na maioria das pessoas. Hoje a confiança murchou: só quatro de cada dez confiam nos demais. Este modelo de desenvolvimento desenvolve a desvinculação. Quanto mais se sataniza a relação com as pessoas, que podem te pegar a Aids, te tirar o emprego ou te depenar a casa, mais se sacraliza a relação com as máquinas. A indústria da comunicação, a mais dinâmica da economia mundial, vende as abracadabras que dão acesso à Nova Era da história da humanidade. Mas este mundo comunicadíssimo está se parecendo demais com um reino de sozinhos e de mudos.

       Os meios dominantes de comunicação estão em poucas mãos, que são cada vez menos mãos e em regra atuam a serviço de um sistema que reduz as relações humanas ao mútuo uso e ao mútuo medo. Nos últimos tempos, a galáxia Internet abriu imprevistas e valiosas oportunidades de expressão alternativa. Pela Internet estão irradiando suas mensagens numerosas vozes que não são ecos do poder. Mas o acesso a essa nova autopista da informação é ainda um privilégio dos países desenvolvidos, onde reside noventa e cinco por cento dos usuários. E já a publicidade comercial está tentando transformar a Internet em Businessnet: esse novo espaço para a liberdade de comunicação é também um novo espaço para a liberdade de comércio. No planeta virtual não se corre o risco de encontrar alfândegas, nem governos com delírios de independência. Em meados de 1997, quando o espaço comercial da rede já superava com sobras o espaço educativo, o presidente dos EUA recomendou que todos os países do mundo mantivessem livres de impostos a venda de bens e serviços através da Internet, e desde então este é um dos assuntos que mais preocupam os representantes norteamericanos nos organismos internacionais.

       O controle do ciberespaço depende das linhas telefônicas e nada é mais casual quer a onda de privatizações dos últimos anos, no mundo inteiro, tenha arrancado os telefones das mãos públicas para entregá-los aos grandes conglomerados da comunicação. Os investimentos norteamericanos em telefonia estrangeira se multiplicam muito mais do que os demais investimentos, enquanto avança a galope a concentração de capitais: até meados de 1998, oito mega-empresas dominavam o negócio telefônico nos EUA, e numa só semana se reduziram a cinco.

       A televisão aberta e por cabo, a indústria cinematográfica, a imprensa de tiragem massiva, as grandes editoras de livros e de discos e as emissoras de rádio de maior alcance também avançam, com botas de sete léguas, para o monopólio. Os mass media de difusão universal puseram nas nuvens o preço da liberdade de expressão: cada vez são mais numerosos os opinados, os que têm o direito de ouvir, e cada vez são menos numerosos os opinadores, os que têm o direito de se fazer ouvir. Nos anos seguintes à Segunda Guerra Mundial, ainda tinham ampla ressonância os meios independentes de informação e opinião e as aventuras criadoras que revelavam e alimentavam a diversidade cultural. Em1980, a absorção de muitas empresas médias e pequenas já deixara maior parte do mercado planetário na posse de cinqüenta empresas. Desde então a independência e a diversidade se tornaram mais raras do que cachorro verde.

       Segundo o produtor Jerry Isenberg, o extermínio da criação independente na televisão norteamericana foi fulminante nos últimos vinte anos: as empresas independentes proporcionavam entre trinta e cinqüenta por cento do que se via na telinha e agora chegam a apenas dez por cento.

       Também são reveladores os números da publicidade no mundo: atualmente, metade de todo o dinheiro que o planeta gasta em publicidade vai parar no bolso de apenas dez conglomerados, que açambarcaram produção e a distribuição de tudo o que se relaciona com imagem, palavra e música.

       Nos últimos cinco anos, duplicaram seu mercado internacional as principais empresas norteamericanas de comunicação: General Electric, Disney/ABC, Time Warner/CNN, Viacom, Tele-Communications INC. (TCI) e a recém chegada Microsoft, a empresa de Bil Gates, que reina no mercado equivalente e televisual. Estes gigantes exercem um poder oligopólico, que em escala planetária é compartilhado pelo império Murdoch, pela empresa japonesa Sony, pela alemã Berteslmann e uma que outra mais. Juntas, teceram uma teia universal. Seus interesses se entrecruzam, atadas que estão por numerosos fios. Ainda que esses mastodontes da comunicação simulem competir e às vezes até se enfrentam e se insultem para satisfazer a platéia, na hora da verdade o espetáculo cessa e, tranquilamente, eles repartem o planeta.

       Por obra e graça da boa sorte cibernética, Bill Gates amealhou uma rápida fortuna equivalente a todo o orçamento anual do estado argentino. Em meados de 1998, o governo dos EUA entrou com uma ação contra a Microsoft, acusada de impor seus produtos através de métodos monopolistas que esmagavam seus competidos. Tempos antes, o governo federal entrara com um processo similar contra a IBM: ao cabo de treze anos de marchas e contramarchas, o assunto deu em nada. Pouco podem as leis jurídicas contra as leis econômicas: a economia capitalista gera concentração de poder como o inverno gera o frio. Não é provável que as leis anti-trust, que outrora ameaçavam os reis do petróleo, possa pôr em perigo a trama planetária que está tornando possível o mais perigoso dos despotismos: o que atua sobre o coração e a consciência da humanidade inteira.

       A diversidade tecnológica quer significar diversidade democrática. A tecnologia põe a imagem, a palavra e a música ao alcance de todos, como nunca antes ocorrera na história humana, mas essa maravilha pode se transformar num logro para incautos se o monopólio privado acabar impondo a ditadura da imagem única, da palavra única e da música única. Ressalvadas as exceções, que afortunadamente existem e não são poucas, essa pluralidade tende, em regra, a nos oferecer milhares de possibilidades de escolher entre o mesmo e o mesmo. Como diz o jornalista argentino Ezequiel Fernández-Moore, a propósito da informação: “Estamos informados de tudo, mas não sabemos de nada”.

FUNDAMENTALISMO - TEXTO PARA OS ALUNOS DO SPRBC


SOBRE CRENÇAS E INTOLERÂNCIA 

(Jornal do Brasil de 20.10.2001)
Leonardo Boff

     O fundamentalismo não possui apenas um rosto religioso; todos os sistemas que se apresentam como portadores exclusivos da verdade devem ser considerados fundamentalistas

     Hoje se fala muito de fundamentalismo. Fundamentalismo do mercado e do projeto neoliberal, fundamentalismo cristão, fundamentalismo islâmico, principal responsável pelos atentados de 11 de setembro, fundamentalismo das posturas políticas e bélicas do Presidente Bush. Tentemos esclarecer o leitor o que seja fundamentalismo e o risco que representa para a pacífica convivência humana e para o futuro da humanidade.

     O nicho do fundamentalismo se encontra no protestantismo americano, surgido nos meados do século 19 e formalizado, posteriormente, numa pequena coleção de livros que vinha sob o título Fundamentals: a testimony of the Truth (1909-1915). Trata-se de uma tendência de fiéis, pregadores e teólogos que tomavam as palavras da Bíblia ao pé da letra (o fundamento de tudo para a fé protestante é a Bíblia). Se Deus consignou sua revelação no Livro Sagrado, então tudo, cada palavra e cada sentença devem ser verdadeiras e imutáveis. Em nome do literalismo, esses fiéis opunham-se às interpretações da assim chamada teologia liberal. Esta usava e usa os métodos histórico-críticos e hermenêuticos para interpretar textos escritos há 2-3 mil anos. Supõe-se que a história e as palavras não ficaram congeladas. Precisam ser interpretados para resgatar-lhes os sentidos originais. Esse procedimento para os fundamentalistas é ofensivo a Deus. Por razões semelhantes, eles se opõem aos conhecimentos contemporâneos da história, das ciências, da geografia e especialmente da biologia que possam questionar a verdade bíblica.

     Para o fundamentalista, a criação se realizou mesmo em sete dias. O cristianismo detém o monopólio da verdade revelada. Jesus é o único caminho para a salvação. Fora dele há somente perdição. Daí o caráter militante e missionário de todo fundamentalista. Face aos demais caminhos espirituais ele é intolerante, pois eles significam simplesmente errância. Na moral é especialmente rigoroso, particularmente no que concerne à sexualidade e à família. É contra os homossexuais, o movimento feminista e os movimentos libertários em geral. Na economia é conservador e na política sempre exalta a ordem e a segurança a qualquer custo.

     O fundamentalismo protestante ganhou relevância social a partir dos anos 50 com a Eletronic Church. Pregadores nacionalmente famosos usam o rádio e a televisão em cadeia para suas pregações e campanhas conservadoras. Sob Ronald Reagan, significaram um fator político determinante. Combatem abertamente o Conselho Mundial de Igrejas em Genebra (que reúne mais de duas centenas de denominações cristãs) e todo tipo de ecumenismo, tidos como coisa do diabo.

     O catolicismo possui também seu tipo de fundamentalismo. Ele vem sob o nome de Restauração e Integrismo. Procura-se restaurar a antiga ordem, fundada no casamento (incestuoso) do poder político com o poder clerical. Visa-se uma integração de todos os elementos da sociedade, e da história sob a hegemonia do espiritual representado, interpretado e proposto pela Igreja Católica (seu corpo hierárquico encabeçado pelo Papa). O inimigo a combater é a modernidade, com suas liberdades e seu processo de secularização. Expressões do Integrismo é modernamente o Cardeal Josef Ratzinger, presidente da antiga Inquisição, que sustenta ainda a tese de que a Igreja Católica é a única Igreja de Cristo, também a única religião verdadeira, fora da qual não todos correm risco de perdição. Ou o arcebispo Marcel Lefebvre, que fundou sua Igreja paralela, considerada a fiel detentora da Tradição e da fé verdadeiras. Características fundamentalistas se encontram também em setores importantes do pentecostismo, também católico e nas igrejas evangelicais populares.

     Intolerância - O fundamentalismo não é uma doutrina. Mas uma forma de interpretar e viver a doutrina. É a atitude daquele que confere caráter absoluto ao seu ponto de vista. Sendo assim, imediatamente surge um problema de graves conseqüências: quem se sente portador de uma verdade absoluta não pode tolerar outra verdade e seu destino é a intolerância. E a intolerância gera o desprezo do outro e o desprezo, a agressividade e a agressividade, a guerra contra o erro a ser combatido e exterminado. Irrompem guerras religiosas, violentíssimas, com incontáveis vítimas.

     Não há nenhuma religião mais guerreira que a tradição dos filhos de Abraão: judeus, cristãos e muçulmanos. Cada qual vive da convicção tribalista de ser povo escolhido e portador exclusivo da revelação do Deus único e verdadeiro. Essa fé deve ser difundida em todo o mundo, em geral numa articulação com o poder colonialista e imperial, como historicamente ocorreu na América Latina, África e Ásia.

     O fundamentalismo, como atitude e tendência, se encontra em setores de todas as religiões e caminhos espirituais. Hoje em dia, o fundamentalismo judeu se centra na construção do Estado de Israel segundo o tamanho que lhe atribui à Bíblia hebraica. O fundamentalismo islâmico quer fazer do Alcorão a única forma de vida, de moral, de política e de organização do Estado entre os islâmicos e em todo o mundo. Todos os que se opõem a essa visão de mundo são obstáculos à instauração “da cidade de Deus” e conseqüentemente são infiéis e merecem ser perseguidos e eventualmente eliminados.

     Verdade — O fundamentalismo não possui apenas um rosto religioso. Todos os sistemas sejam culturais, científicos, políticos, econômicos e artísticos que se apresentam como portadores exclusivos de verdade e de solução única para os problemas devem ser considerados fundamentalistas. Vivemos atualmente sob o império feroz de vários fundamentalismos.

     O primeiro e mais visível de todos é o fundamentalismo da ideologia política do neoliberalismo, do modo de produção capitalista e de sua melhor expressão, o mercado mundialmente integrado. Ele se apresenta como a solução única para todos os países e para todos as carências da humanidade (todos precisam de um necessário choque de capitalismo, diz-se fundamentalisticamente). A lógica interna deste sistema, entretanto, é ser acumulador de bens e serviços, por isso, criador de grandes desigualdades (injustiças), explorador ou dispensador da força de trabalho e predador da natureza. Ele é apenas competitivo e nada cooperativo. Politicamente é democrático, economicamente é ditatorial. Por isso a economia capitalista destrói continuamente a democracia participativa. Onde se implanta, a cultura capitalista cria uma cosmovisão materialista, individualista e sem qualquer freio ético. Há teóricos que apresentam essa etapa como o fim da história. Para ela não haveria alternativa. Urge inserir-se nela. Caso contrário perde-se o ritmo da história. A condenação é a marginalidade ou a exclusão. Eis o pensamento único e a ditadura da globalização especialmente econômico-financeira (considero esta etapa como a idade de ferro da globalização), hegemonizada pelas potências ocidentais.

     Outro tipo de fundamentalismo comparece no paradigma científico moderno. Ele está assentado sobre a violência contra a natureza. Bem dizia Francis Bacon, pai da moderna metodologia científica: há de se torturar a natureza como o faz o inquisidor com seu inquirido, até que ela entregue todos os seus segredos. Impõe-se esse método, fundado no corte e na compartimentação da realidade una e diversa, como a única forma aceitável de acesso ao real. Desmoralizam-se outras formas de conhecimento que vão além ou ficam aquém dos caminhos da razão instrumental-analítica. Ocorre que o projeto da tecnociência gestou o princípio da autodestruição da vida. A máquina de morte já construída pode pôr fim à biosfera e impossibilitar o projeto planetário humano. Na guerra bacteriológica, basta meio quilo de toxina do botulismo para matar 1 bilhão de pessoas.

     Bin Laden - Nos dias atuais assistimos, estarrecidos, a dois tipos de fundamentalismo político. Um representado pelo presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, e outro por Osama Bin Laden. O presidente americano urde seus discursos no melhor código fundamentalista: A luta é do bem (América) contra o mal (terrorismo islâmico). Ou se é contra o terrorismo e pela América ou se é a favor do terrorismo e contra a América. Não há matizes nem alternativas. O ataque terrorista não foi contra os Estados Unidos, mas sim contra a humanidade, na suposição que eles são a própria humanidade. O projeto inicial de guerra se chamava Justiça Infinita, termo que usurpa a dimensão do Divino. Depois com menor arrogância, mas na linguagem da utopia, chamou-se de Liberdade Duradoura. Termina suas intervenções com “God saves America. Há dezenas de anos que a política exterior dos Estados Unidos maltrata as nações árabes fazendo pacto com governantes despóticos (alguns emirados árabes nem constituição possuem) em razão da garantia do suprimento de petróleo. A partir de 1991, por ocasião da guerra contra o Iraque, já morreram naquele país cerca de 1 milhão de crianças por causa do embargo que atinge os suprimentos medicinais e 5% da população foi morta em sistemáticos bombardeios.

     A atuação no conflito entre Israel e os palestinos é as posições dos Estados Unidos visivelmente unilateral, em favor dos ataques devastadores que a máquina de guerra israelense move contra a população palestina que usa pedras (intifada). A Arábia Saudita é ocupada por uma poderosa base militar americana, território sagrado do islamismo onde se situam as duas cidades santas Meca e Medina. Tal fato é para a fé islâmica tão vergonhoso quanto um católico tolerar a Máfia no governo do Vaticano. Coisas assim acumulam amargura, ressentimento, revolta e vontade de vindita. É o fermento do terrorismo muçulmano cujos efeitos nefastos todos assistimos e condenamos.

     Não menos fundamentalista é a retórica dos talibãs e de Osama Bin Laden. Este também coloca a guerra entre o bem (islamismo) e o mal (a América). Em seu famoso discurso após o atentado, divide o mundo entre dois campos: o campo dos fiéis e o campo dos infiéis. “O chefe dos infiéis internacionais, o símbolo mundial moderno do paganismo, é a América e seus aliados.” O atentado terrorista significa que “a América foi atacada por Deus em um dos seus órgãos vitais - Graça e gratidão a Deus”. A cultura ocidental como um todo é vista como materialista, atéia, secularista, anti-ética e belicista. Daí a recusa em dialogar com ela e a vontade de estrangulá-la em nome do próprio Alá.

     Em nome de que Deus ambos falam? Não é seguramente em nome do Deus da vida, de Alá, o Grande e Misericordioso, nem em nome do Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, da ternura dos humildes e da opção pelos oprimidos. Falam em nome de ídolos que produzem mortes e vivem de sangue.

     É próprio do fundamentalismo responder terror com terror, pois se trata de conferir vitória à única verdade e ao bem e destruir a falsa “verdade” e o mal. Foi o que ambos, Bush e Bin Laden fizeram. Enquanto predominarem tais fundamentalismos seremos condenados à intolerância, à violência e à guerra e, no termo, à ameaça de dizimação da biosfera.

     Cegos - Não se há de sorrir nem de chorar. Mas de procurar entender. Todos os fundamentalismos, não obstante o variado matiz, possuem as mesmas constantes. Trata-se sempre de um sistema fechado, feito de claro e de escuro, inimigo de toda diferenciação e cego face à lógica do ar co-íris, em que a pluralidade convive com a unidade. Cada verdade se encontra indissolúvel mente concatenada à outra. Questionada uma, desaba todo o edifício. Daí a intolerância e a lógica linear. Daí sua força de atração para espíritos sedentos de orientações claras e de contornos precisos. Para o fundamentalista militante a mor te é doce, pois transporta o mártir diretamente ao seio materno de “Deus”, enquanto a vida é vivida como oportunidade de cumprir a missão divina de converter ou exterminar os infiéis. O grupo é o lar da identidade, o porto da plena segurança e a confirmação de estar do lado certo.

     Como enfrentar os fundamentalistas? Estes são praticamente inacessíveis à argumentação racional. Nem por isso deve-se renunciar ao diálogo, à tolerância e o uso da razão para mostrar as contradições internas, subjacentes ao discurso e à prática fundamentalista. Por detrás do fundamentalismo político vigora uma experiência dolorosa e humilhação e de prolongado sofrimento. E procura-se infligir a mesma coisa ao outro, o que manifestamente contraditório. Trazer o fundamentalista à realidade concreta, cheia de contradições, claro-escuros e nuances pode introduzir ele a dúvida e a insegurança. Estas possuem uma função terapêutica. Podem abrir uma brecha ara a luz no muro das convicções cerradas e excludentes. Dialogar até a exaustão, negociar até o imite intransponível da razoabilidade, pode levar o fundamentalista a reconhecer o outro, seu direito de existir e a contribuição que poderá dar para uma convergência mínima na diversidade.

     Estamos numa encruzilhada da história humana. Ou criar-se-ão relações multipolares de poder, eqüitativas e inclusivas com pesados investimentos na qualidade total da vida para que todos possam comer, morar com mínima dignidade e apropriar-se de cultura com a qual se possam comunicar com seus semelhantes, preservando a integridade e beleza da natureza ou iremos ao encontro do pior, quem sabe, ao mesmo destino dos dinossauros. Armas para isso existem e sobra demência. Faz-se urgente mais sabedoria que poder e mais espiritualidade que acúmulo de bens matérias. Então os povos poderão se abraçar como irmãos na mesma Casa Comum, a Terra, e irradiaremos como filhos da alegria e não como condenados ao vale de lágrimas.

     - Leonardo Boff é teólogo e escritor, autor de A oração de São Francisco: uma mensagem de paz para o mundo atual (Sextante)