domingo, 11 de outubro de 2009

O DIREITO DE EXPRESSÃO É O DEIREITO DE ESCUTAR?

Em qua, 30/9/09, José Ernesto Alves Grisa escreveu:



De: José Ernesto Alves Grisa

Assunto: Eduardo Galeano

Para: josegrisa@yahoo.com.br

Data: Quarta-feira, 30 de Setembro de 2009, 13:03

O direito de expressão é o direito de escutar?

       A tecnologia põe a imagem, a palavra e a música ao alcance de todos, como nunca antes ocorrera na história humana, mas essa maravilha pode se transformar num logro para incautos se o monopólio privado acabar impondo a ditadura da imagem única, da palavra única e da música única. Ressalvadas as exceções, que afortunadamente existem e não são poucas, essa pluralidade tende, em regra, a nos oferecer milhares de possibilidades de escolher entre o mesmo e o mesmo. O texto é de Eduardo Galeano.

Eduardo Galeano

Texto publicado no livro "De pernas pro ar" (LPM)
“Estamos informados de tudo, mas não sabemos de nada”

       No século XVI, alguns teólogos da igreja católica legitimavam a conquista da América em nome do direito da comunicação. Jus communicationis: os conquistadores falavam, os índios escutavam. A guerra era inevitável justamente quando os índios se faziam de surdos. Seu direito de comunicação consistia no direito de obedecer. No fim do século XX, aquela violação da América ainda se chama encontro de culturas, enquanto continua se chamando comunicação o monólogo do poder.

       Ao redor da Terra gira um anel de satélites cheios de milhões e milhões de palavras e imagens, que da terra vêm e à terra voltam. Prodigiosas engenhocas do tamanho de uma unha recebem, processam e emitem, na velocidade da luz, mensagens que há meio século exigiriam trinta toneladas de maquinaria. Milagres da tecnociência nestes tecnotempos: os mais afortunados membros da sociedade midiática podem desfrutar suas férias atendendo o telefone celular, recebendo e-mail, respondendo ao bipe, lendo faxes, transferindo as chamadas do receptor automático, fazendo compras por computador e preenchendo o ócio com os videogames e a televisão portátil.

       Vôo e vertigem da tecnologia da comunicação, que parece bruxaria: à meia-noite, um computador beija a testa de Bill Gates, que de manhã desperta transformado no homem mais rico do mundo. Já está no mercado o primeiro microfone incorporado ao computador, para que se converse com ele. No ciberespaço, Cidade celestial, celebra-se o matrimônio do computador com o telefone e a televisão, convidando-se a humanidade para o batismo de seus filhos assombrosos.

       A cibercomunidade nascente encontra refúgio na realidade virtual, enquanto as cidades se transformam em imensos desertos cheios de gente, onde cada qual vela por seu santo e está metido em sua própria bolha. Há quarenta anos, segundo as pesquisas, seis de cada dez norteamericanos confiavam na maioria das pessoas. Hoje a confiança murchou: só quatro de cada dez confiam nos demais. Este modelo de desenvolvimento desenvolve a desvinculação. Quanto mais se sataniza a relação com as pessoas, que podem te pegar a Aids, te tirar o emprego ou te depenar a casa, mais se sacraliza a relação com as máquinas. A indústria da comunicação, a mais dinâmica da economia mundial, vende as abracadabras que dão acesso à Nova Era da história da humanidade. Mas este mundo comunicadíssimo está se parecendo demais com um reino de sozinhos e de mudos.

       Os meios dominantes de comunicação estão em poucas mãos, que são cada vez menos mãos e em regra atuam a serviço de um sistema que reduz as relações humanas ao mútuo uso e ao mútuo medo. Nos últimos tempos, a galáxia Internet abriu imprevistas e valiosas oportunidades de expressão alternativa. Pela Internet estão irradiando suas mensagens numerosas vozes que não são ecos do poder. Mas o acesso a essa nova autopista da informação é ainda um privilégio dos países desenvolvidos, onde reside noventa e cinco por cento dos usuários. E já a publicidade comercial está tentando transformar a Internet em Businessnet: esse novo espaço para a liberdade de comunicação é também um novo espaço para a liberdade de comércio. No planeta virtual não se corre o risco de encontrar alfândegas, nem governos com delírios de independência. Em meados de 1997, quando o espaço comercial da rede já superava com sobras o espaço educativo, o presidente dos EUA recomendou que todos os países do mundo mantivessem livres de impostos a venda de bens e serviços através da Internet, e desde então este é um dos assuntos que mais preocupam os representantes norteamericanos nos organismos internacionais.

       O controle do ciberespaço depende das linhas telefônicas e nada é mais casual quer a onda de privatizações dos últimos anos, no mundo inteiro, tenha arrancado os telefones das mãos públicas para entregá-los aos grandes conglomerados da comunicação. Os investimentos norteamericanos em telefonia estrangeira se multiplicam muito mais do que os demais investimentos, enquanto avança a galope a concentração de capitais: até meados de 1998, oito mega-empresas dominavam o negócio telefônico nos EUA, e numa só semana se reduziram a cinco.

       A televisão aberta e por cabo, a indústria cinematográfica, a imprensa de tiragem massiva, as grandes editoras de livros e de discos e as emissoras de rádio de maior alcance também avançam, com botas de sete léguas, para o monopólio. Os mass media de difusão universal puseram nas nuvens o preço da liberdade de expressão: cada vez são mais numerosos os opinados, os que têm o direito de ouvir, e cada vez são menos numerosos os opinadores, os que têm o direito de se fazer ouvir. Nos anos seguintes à Segunda Guerra Mundial, ainda tinham ampla ressonância os meios independentes de informação e opinião e as aventuras criadoras que revelavam e alimentavam a diversidade cultural. Em1980, a absorção de muitas empresas médias e pequenas já deixara maior parte do mercado planetário na posse de cinqüenta empresas. Desde então a independência e a diversidade se tornaram mais raras do que cachorro verde.

       Segundo o produtor Jerry Isenberg, o extermínio da criação independente na televisão norteamericana foi fulminante nos últimos vinte anos: as empresas independentes proporcionavam entre trinta e cinqüenta por cento do que se via na telinha e agora chegam a apenas dez por cento.

       Também são reveladores os números da publicidade no mundo: atualmente, metade de todo o dinheiro que o planeta gasta em publicidade vai parar no bolso de apenas dez conglomerados, que açambarcaram produção e a distribuição de tudo o que se relaciona com imagem, palavra e música.

       Nos últimos cinco anos, duplicaram seu mercado internacional as principais empresas norteamericanas de comunicação: General Electric, Disney/ABC, Time Warner/CNN, Viacom, Tele-Communications INC. (TCI) e a recém chegada Microsoft, a empresa de Bil Gates, que reina no mercado equivalente e televisual. Estes gigantes exercem um poder oligopólico, que em escala planetária é compartilhado pelo império Murdoch, pela empresa japonesa Sony, pela alemã Berteslmann e uma que outra mais. Juntas, teceram uma teia universal. Seus interesses se entrecruzam, atadas que estão por numerosos fios. Ainda que esses mastodontes da comunicação simulem competir e às vezes até se enfrentam e se insultem para satisfazer a platéia, na hora da verdade o espetáculo cessa e, tranquilamente, eles repartem o planeta.

       Por obra e graça da boa sorte cibernética, Bill Gates amealhou uma rápida fortuna equivalente a todo o orçamento anual do estado argentino. Em meados de 1998, o governo dos EUA entrou com uma ação contra a Microsoft, acusada de impor seus produtos através de métodos monopolistas que esmagavam seus competidos. Tempos antes, o governo federal entrara com um processo similar contra a IBM: ao cabo de treze anos de marchas e contramarchas, o assunto deu em nada. Pouco podem as leis jurídicas contra as leis econômicas: a economia capitalista gera concentração de poder como o inverno gera o frio. Não é provável que as leis anti-trust, que outrora ameaçavam os reis do petróleo, possa pôr em perigo a trama planetária que está tornando possível o mais perigoso dos despotismos: o que atua sobre o coração e a consciência da humanidade inteira.

       A diversidade tecnológica quer significar diversidade democrática. A tecnologia põe a imagem, a palavra e a música ao alcance de todos, como nunca antes ocorrera na história humana, mas essa maravilha pode se transformar num logro para incautos se o monopólio privado acabar impondo a ditadura da imagem única, da palavra única e da música única. Ressalvadas as exceções, que afortunadamente existem e não são poucas, essa pluralidade tende, em regra, a nos oferecer milhares de possibilidades de escolher entre o mesmo e o mesmo. Como diz o jornalista argentino Ezequiel Fernández-Moore, a propósito da informação: “Estamos informados de tudo, mas não sabemos de nada”.

FUNDAMENTALISMO - TEXTO PARA OS ALUNOS DO SPRBC


SOBRE CRENÇAS E INTOLERÂNCIA 

(Jornal do Brasil de 20.10.2001)
Leonardo Boff

     O fundamentalismo não possui apenas um rosto religioso; todos os sistemas que se apresentam como portadores exclusivos da verdade devem ser considerados fundamentalistas

     Hoje se fala muito de fundamentalismo. Fundamentalismo do mercado e do projeto neoliberal, fundamentalismo cristão, fundamentalismo islâmico, principal responsável pelos atentados de 11 de setembro, fundamentalismo das posturas políticas e bélicas do Presidente Bush. Tentemos esclarecer o leitor o que seja fundamentalismo e o risco que representa para a pacífica convivência humana e para o futuro da humanidade.

     O nicho do fundamentalismo se encontra no protestantismo americano, surgido nos meados do século 19 e formalizado, posteriormente, numa pequena coleção de livros que vinha sob o título Fundamentals: a testimony of the Truth (1909-1915). Trata-se de uma tendência de fiéis, pregadores e teólogos que tomavam as palavras da Bíblia ao pé da letra (o fundamento de tudo para a fé protestante é a Bíblia). Se Deus consignou sua revelação no Livro Sagrado, então tudo, cada palavra e cada sentença devem ser verdadeiras e imutáveis. Em nome do literalismo, esses fiéis opunham-se às interpretações da assim chamada teologia liberal. Esta usava e usa os métodos histórico-críticos e hermenêuticos para interpretar textos escritos há 2-3 mil anos. Supõe-se que a história e as palavras não ficaram congeladas. Precisam ser interpretados para resgatar-lhes os sentidos originais. Esse procedimento para os fundamentalistas é ofensivo a Deus. Por razões semelhantes, eles se opõem aos conhecimentos contemporâneos da história, das ciências, da geografia e especialmente da biologia que possam questionar a verdade bíblica.

     Para o fundamentalista, a criação se realizou mesmo em sete dias. O cristianismo detém o monopólio da verdade revelada. Jesus é o único caminho para a salvação. Fora dele há somente perdição. Daí o caráter militante e missionário de todo fundamentalista. Face aos demais caminhos espirituais ele é intolerante, pois eles significam simplesmente errância. Na moral é especialmente rigoroso, particularmente no que concerne à sexualidade e à família. É contra os homossexuais, o movimento feminista e os movimentos libertários em geral. Na economia é conservador e na política sempre exalta a ordem e a segurança a qualquer custo.

     O fundamentalismo protestante ganhou relevância social a partir dos anos 50 com a Eletronic Church. Pregadores nacionalmente famosos usam o rádio e a televisão em cadeia para suas pregações e campanhas conservadoras. Sob Ronald Reagan, significaram um fator político determinante. Combatem abertamente o Conselho Mundial de Igrejas em Genebra (que reúne mais de duas centenas de denominações cristãs) e todo tipo de ecumenismo, tidos como coisa do diabo.

     O catolicismo possui também seu tipo de fundamentalismo. Ele vem sob o nome de Restauração e Integrismo. Procura-se restaurar a antiga ordem, fundada no casamento (incestuoso) do poder político com o poder clerical. Visa-se uma integração de todos os elementos da sociedade, e da história sob a hegemonia do espiritual representado, interpretado e proposto pela Igreja Católica (seu corpo hierárquico encabeçado pelo Papa). O inimigo a combater é a modernidade, com suas liberdades e seu processo de secularização. Expressões do Integrismo é modernamente o Cardeal Josef Ratzinger, presidente da antiga Inquisição, que sustenta ainda a tese de que a Igreja Católica é a única Igreja de Cristo, também a única religião verdadeira, fora da qual não todos correm risco de perdição. Ou o arcebispo Marcel Lefebvre, que fundou sua Igreja paralela, considerada a fiel detentora da Tradição e da fé verdadeiras. Características fundamentalistas se encontram também em setores importantes do pentecostismo, também católico e nas igrejas evangelicais populares.

     Intolerância - O fundamentalismo não é uma doutrina. Mas uma forma de interpretar e viver a doutrina. É a atitude daquele que confere caráter absoluto ao seu ponto de vista. Sendo assim, imediatamente surge um problema de graves conseqüências: quem se sente portador de uma verdade absoluta não pode tolerar outra verdade e seu destino é a intolerância. E a intolerância gera o desprezo do outro e o desprezo, a agressividade e a agressividade, a guerra contra o erro a ser combatido e exterminado. Irrompem guerras religiosas, violentíssimas, com incontáveis vítimas.

     Não há nenhuma religião mais guerreira que a tradição dos filhos de Abraão: judeus, cristãos e muçulmanos. Cada qual vive da convicção tribalista de ser povo escolhido e portador exclusivo da revelação do Deus único e verdadeiro. Essa fé deve ser difundida em todo o mundo, em geral numa articulação com o poder colonialista e imperial, como historicamente ocorreu na América Latina, África e Ásia.

     O fundamentalismo, como atitude e tendência, se encontra em setores de todas as religiões e caminhos espirituais. Hoje em dia, o fundamentalismo judeu se centra na construção do Estado de Israel segundo o tamanho que lhe atribui à Bíblia hebraica. O fundamentalismo islâmico quer fazer do Alcorão a única forma de vida, de moral, de política e de organização do Estado entre os islâmicos e em todo o mundo. Todos os que se opõem a essa visão de mundo são obstáculos à instauração “da cidade de Deus” e conseqüentemente são infiéis e merecem ser perseguidos e eventualmente eliminados.

     Verdade — O fundamentalismo não possui apenas um rosto religioso. Todos os sistemas sejam culturais, científicos, políticos, econômicos e artísticos que se apresentam como portadores exclusivos de verdade e de solução única para os problemas devem ser considerados fundamentalistas. Vivemos atualmente sob o império feroz de vários fundamentalismos.

     O primeiro e mais visível de todos é o fundamentalismo da ideologia política do neoliberalismo, do modo de produção capitalista e de sua melhor expressão, o mercado mundialmente integrado. Ele se apresenta como a solução única para todos os países e para todos as carências da humanidade (todos precisam de um necessário choque de capitalismo, diz-se fundamentalisticamente). A lógica interna deste sistema, entretanto, é ser acumulador de bens e serviços, por isso, criador de grandes desigualdades (injustiças), explorador ou dispensador da força de trabalho e predador da natureza. Ele é apenas competitivo e nada cooperativo. Politicamente é democrático, economicamente é ditatorial. Por isso a economia capitalista destrói continuamente a democracia participativa. Onde se implanta, a cultura capitalista cria uma cosmovisão materialista, individualista e sem qualquer freio ético. Há teóricos que apresentam essa etapa como o fim da história. Para ela não haveria alternativa. Urge inserir-se nela. Caso contrário perde-se o ritmo da história. A condenação é a marginalidade ou a exclusão. Eis o pensamento único e a ditadura da globalização especialmente econômico-financeira (considero esta etapa como a idade de ferro da globalização), hegemonizada pelas potências ocidentais.

     Outro tipo de fundamentalismo comparece no paradigma científico moderno. Ele está assentado sobre a violência contra a natureza. Bem dizia Francis Bacon, pai da moderna metodologia científica: há de se torturar a natureza como o faz o inquisidor com seu inquirido, até que ela entregue todos os seus segredos. Impõe-se esse método, fundado no corte e na compartimentação da realidade una e diversa, como a única forma aceitável de acesso ao real. Desmoralizam-se outras formas de conhecimento que vão além ou ficam aquém dos caminhos da razão instrumental-analítica. Ocorre que o projeto da tecnociência gestou o princípio da autodestruição da vida. A máquina de morte já construída pode pôr fim à biosfera e impossibilitar o projeto planetário humano. Na guerra bacteriológica, basta meio quilo de toxina do botulismo para matar 1 bilhão de pessoas.

     Bin Laden - Nos dias atuais assistimos, estarrecidos, a dois tipos de fundamentalismo político. Um representado pelo presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, e outro por Osama Bin Laden. O presidente americano urde seus discursos no melhor código fundamentalista: A luta é do bem (América) contra o mal (terrorismo islâmico). Ou se é contra o terrorismo e pela América ou se é a favor do terrorismo e contra a América. Não há matizes nem alternativas. O ataque terrorista não foi contra os Estados Unidos, mas sim contra a humanidade, na suposição que eles são a própria humanidade. O projeto inicial de guerra se chamava Justiça Infinita, termo que usurpa a dimensão do Divino. Depois com menor arrogância, mas na linguagem da utopia, chamou-se de Liberdade Duradoura. Termina suas intervenções com “God saves America. Há dezenas de anos que a política exterior dos Estados Unidos maltrata as nações árabes fazendo pacto com governantes despóticos (alguns emirados árabes nem constituição possuem) em razão da garantia do suprimento de petróleo. A partir de 1991, por ocasião da guerra contra o Iraque, já morreram naquele país cerca de 1 milhão de crianças por causa do embargo que atinge os suprimentos medicinais e 5% da população foi morta em sistemáticos bombardeios.

     A atuação no conflito entre Israel e os palestinos é as posições dos Estados Unidos visivelmente unilateral, em favor dos ataques devastadores que a máquina de guerra israelense move contra a população palestina que usa pedras (intifada). A Arábia Saudita é ocupada por uma poderosa base militar americana, território sagrado do islamismo onde se situam as duas cidades santas Meca e Medina. Tal fato é para a fé islâmica tão vergonhoso quanto um católico tolerar a Máfia no governo do Vaticano. Coisas assim acumulam amargura, ressentimento, revolta e vontade de vindita. É o fermento do terrorismo muçulmano cujos efeitos nefastos todos assistimos e condenamos.

     Não menos fundamentalista é a retórica dos talibãs e de Osama Bin Laden. Este também coloca a guerra entre o bem (islamismo) e o mal (a América). Em seu famoso discurso após o atentado, divide o mundo entre dois campos: o campo dos fiéis e o campo dos infiéis. “O chefe dos infiéis internacionais, o símbolo mundial moderno do paganismo, é a América e seus aliados.” O atentado terrorista significa que “a América foi atacada por Deus em um dos seus órgãos vitais - Graça e gratidão a Deus”. A cultura ocidental como um todo é vista como materialista, atéia, secularista, anti-ética e belicista. Daí a recusa em dialogar com ela e a vontade de estrangulá-la em nome do próprio Alá.

     Em nome de que Deus ambos falam? Não é seguramente em nome do Deus da vida, de Alá, o Grande e Misericordioso, nem em nome do Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, da ternura dos humildes e da opção pelos oprimidos. Falam em nome de ídolos que produzem mortes e vivem de sangue.

     É próprio do fundamentalismo responder terror com terror, pois se trata de conferir vitória à única verdade e ao bem e destruir a falsa “verdade” e o mal. Foi o que ambos, Bush e Bin Laden fizeram. Enquanto predominarem tais fundamentalismos seremos condenados à intolerância, à violência e à guerra e, no termo, à ameaça de dizimação da biosfera.

     Cegos - Não se há de sorrir nem de chorar. Mas de procurar entender. Todos os fundamentalismos, não obstante o variado matiz, possuem as mesmas constantes. Trata-se sempre de um sistema fechado, feito de claro e de escuro, inimigo de toda diferenciação e cego face à lógica do ar co-íris, em que a pluralidade convive com a unidade. Cada verdade se encontra indissolúvel mente concatenada à outra. Questionada uma, desaba todo o edifício. Daí a intolerância e a lógica linear. Daí sua força de atração para espíritos sedentos de orientações claras e de contornos precisos. Para o fundamentalista militante a mor te é doce, pois transporta o mártir diretamente ao seio materno de “Deus”, enquanto a vida é vivida como oportunidade de cumprir a missão divina de converter ou exterminar os infiéis. O grupo é o lar da identidade, o porto da plena segurança e a confirmação de estar do lado certo.

     Como enfrentar os fundamentalistas? Estes são praticamente inacessíveis à argumentação racional. Nem por isso deve-se renunciar ao diálogo, à tolerância e o uso da razão para mostrar as contradições internas, subjacentes ao discurso e à prática fundamentalista. Por detrás do fundamentalismo político vigora uma experiência dolorosa e humilhação e de prolongado sofrimento. E procura-se infligir a mesma coisa ao outro, o que manifestamente contraditório. Trazer o fundamentalista à realidade concreta, cheia de contradições, claro-escuros e nuances pode introduzir ele a dúvida e a insegurança. Estas possuem uma função terapêutica. Podem abrir uma brecha ara a luz no muro das convicções cerradas e excludentes. Dialogar até a exaustão, negociar até o imite intransponível da razoabilidade, pode levar o fundamentalista a reconhecer o outro, seu direito de existir e a contribuição que poderá dar para uma convergência mínima na diversidade.

     Estamos numa encruzilhada da história humana. Ou criar-se-ão relações multipolares de poder, eqüitativas e inclusivas com pesados investimentos na qualidade total da vida para que todos possam comer, morar com mínima dignidade e apropriar-se de cultura com a qual se possam comunicar com seus semelhantes, preservando a integridade e beleza da natureza ou iremos ao encontro do pior, quem sabe, ao mesmo destino dos dinossauros. Armas para isso existem e sobra demência. Faz-se urgente mais sabedoria que poder e mais espiritualidade que acúmulo de bens matérias. Então os povos poderão se abraçar como irmãos na mesma Casa Comum, a Terra, e irradiaremos como filhos da alegria e não como condenados ao vale de lágrimas.

     - Leonardo Boff é teólogo e escritor, autor de A oração de São Francisco: uma mensagem de paz para o mundo atual (Sextante)




sábado, 27 de junho de 2009

Desenvolvimento: para quê e para quem?


O grupo dominado, mas em vias de superação, tem a escolha de criar novos modos de produção, utilizar os recursos de maneira diferenciada
Roberta Traspadini

Durante os últimos 70 anos, muito se discute na América Latina sobre crescimento, desenvolvimento, qualidade de vida, sustentabilidade, Estado de direito, entre outros conceitos historicamente determinados. Cada um deles, inseridos na célula básica de confrontação entre visões de mundo distintas.
Como definem estes conceitos, sujeitos políticos de ideologias diferentes? O que está por trás de suas visões de mundo? Quais as implicações históricas de um atuar com base em uma matriz dominante de “desenvolvimento”?
Autores contemporâneos, pós-modernos, defendem que entre as duas visões que serão tratadas neste texto, existem outras várias possibilidades de compreensão sobre o mesmo tema. No entanto, não acreditamos em múltiplos caminhos possíveis, frutos da consolidação de uma coluna do meio, que mescle interesses. Acreditamos nas derivações táticas a partir destas duas visões de conteúdo estratégico de classe.
Temos um método, um modo de caminhar com base em uma explicação específica. É através deste método, o materialismo histórico dialético (MHD), que analisamos a situação concreta com o intuito de transformá-la. Mas este não é um método único, nem o dominante. Mas nem por isso, o menos importante.
Com base neste método, acreditamos que o mundo está dividido em duas classes específicas: os que são os donos privados dos fatores e meios de produção, e os que são donos da força de trabalho. Os primeiros, detentores do poder, tanto do capital, quanto do Estado, subestimam aos segundos, produtores reais da riqueza de um País.
É a visão de mundo de cada um destes grupos, e a subordinação de um ao outro, o que imprime, na realidade vivida, a concretização dos conteúdos. Vejamos como estas linhas interpretam os conceitos.

1. O que é desenvolvimento?
Alguns autores, políticos, burgueses, definem o desenvolvimento como a capacidade de promover o crescimento econômico – medido tanto pela produção interna de riqueza, quanto de renda -, e distribuí-lo de maneira eqüitativa. Nessa linha explicativa, crescer e desenvolver são duas facetas inseparáveis, mas a segunda está subordinada à primeira.
Já os autores, políticos, socialistas sustentam que desenvolver é a capacidade que o ser humano tem de promover uma transformação do meio, e de qualificação própria enquanto sujeito, para melhorar seu modo de vida, sem agredir e/ou colocar em xeque sua existência. Nesta linha argumentativa, desenvolvimento tem uma relação direta não com o crescimento, mas com a opção de modelo produtivo realizado.

2. É possível crescer e desenvolver ao mesmo tempo?
Para a primeira, modo central de realização de vida capitalista, a condição chave do processo de desenvolvimento vem da necessidade de consolidação do seu modo de produzir com fins mercantis, cujo objetivo maior é o afã de obter lucro a qualquer custo e por tempo (i)limitado.
Para a segunda, a condição chave está na possibilidade do ser humano, em harmonia com seu meio, no contexto histórico em que vive, rever substantivamente a proposta até então executada e dar um basta no modo depredador do meio, dos seres, do humano.

3. O que é sustentabilidade para estes grupos?
Para os capitalistas, sustentabilidade é a palavra encontrada no contexto histórico de colheita dos resultados catastróficos do capitalismo, para tentar encontrar soluções coletivas, tendo como base o uso individual permanente – em especial das corporaçãoes - como mecanismo reinante de perpetuação do seu suposto império.
Para os socialistas, sustentabilidade é a palavra chave de consolidação de um outro modelo superador do atual, cujo equilíbrio está no uso racional, não utilitarista dos fatores e meios de produção, assim como dos seres humanos não como recursos, mas como produtores e receptores únicos da vida.

4. E a qualidade de vida, como defendem?
Os capitalistas, baseados no seu espírito mercantil ampliado, cuja ética do individuo e da moral burguesa, levantaram as estruturas que relacionam qualidade de vida ao compromisso, ilimitado do ter, não importa o grau e a dimensão sustentável deste ter. A transformação do meio, da vida, do social em propriedade privada, cujos fins, mesmo quando aparecem sem objetivo lucrativo, não têm outra finalidade que não a de fazer dinheiro virar mais dinheiro. Para estes, a qualidade de vida é conseqüência do sucesso de implementar matrizes, copiadas, do processo de “desenvolvimento” das economias capitalistas tecnologicamente mais avançadas.
Os socialistas não conseguem dissociar qualidade de vida sem distribuição da riqueza e da renda, socialização e democratização dos fatores e meios de produção, finalização da opressão e exploração do trabalho e, substantivamente, a consolidação de uma renovada ética e moral pautadas no direito comum, social, frente a atual supremacia do direito individual. Para estes, a qualidade de vida tem a ver com a supremacia da vida sobre a mercadoria, do ser humano sobre o trabalhador escravizado, do Estado de transição sobre o moderno Estado de direito Burguês.

5. Quais as diferenças políticas entre os dois grupos?
O primeiro não quer mudar as bases que sustentam a histórica política depredadora do meio, cujo ente central de regulação da posse, foi, é, será o Estado, representante único na prática dos direitos das minorias populacionais que em realidade são maioria na concentração da riqueza e renda. Legitimam e legalizam as práticas de consolidação de um poder que, ainda quando é questionado na realidade concreta de sobrevivência das pessoas, não pode entrar, via mídia, numa brutal onda de deslegitimação sobre sua onipotência. Para estes, o nacional nada mais é do que a bandeira subordinada de um internacionalismo protagonizado pelo capital.
O segundo, reforça como projeto, a retomada não só do debate, mas da unificação de pautas que legitimem e legalizem a consolidação de um outro modelo produtivo de transição. Na transição, rumo a superação, o nacional que não poderá ser burguês, retoma as bases que o fazem ficar forte para, pouco a pouco, promover a necessária modificação do modelo. É popular porque as bases que o sustentam não são as da estrutura do capital e sim as dos reais promotores da geração de riqueza e renda mundiais: os trabalhadores formais e informais (a classe que vive do trabalho, e que por hora sobrevive da miséria humana condicionada por poucos proprietários, como definidores do destino de muitos).


6. Quais as implicações destes dois modos de conceber o desenvolvimento na sociedade atual?
As implicações do primeiro são a impossibilidade real da sociedade conseguir, nos próximos tempos, projetar seu futuro, sem que relegue a maioria a condição de miséria absoluta. Isto por sua vez, gerará um Estado cada vez mais parceiro do grande capital, cuja promoção máxima que poderá fazer do social, é dar, quando defina como funcional, assistência aos desfavorecidos, ao invés de romper com a estrutura que os desfavorece.
Já na pauta do segundo grupo, as implicações têm relação com a possibilidade de, em meio as catástrofes históricas implementadas pelo modelo dominante, estruturar, em unidade popular, a formação de uma consciência que dê um basta a exclusão, opressão, a condução do Estado de direito pelo capital. Um basta capaz de, após romper o grito frente a crise do humano em suas múltiplas dimensões, formar, na própria cotidianidade, um espaço de conscientização coletiva para não permitir que a informação siga deformando, como é mister ao longo do caminhar dominado pela minoria.
Os dois modelos tratam de escolhas, necessidades, produção e utilização dos recursos. O grupo dominante opta pela utilização (i)limitada e não regulada dos recursos naturais e do ser humano como mercadoria. Já o grupo dominado, mas em vias de superação, tem a escolha de criar novos modos de produção, utilizar os recursos de maneira diferenciada, gerar necessidades reais com base no humano e não no tecnológico inumanamente utilizado. Trata-se de uma opção: ou a continuidade da miséria humana, ou a elevação do humano, pelo trabalho digno, a um posto que resignifique a própria vida.

Roberta Traspadini é economista, Educadora popular, integrante da consulta popular/ES

sábado, 20 de junho de 2009

Terceiro setor: solução para desemprego ou efeito curativo?

Terceiro setor: solução para o desemprego ou efeito curativo? Embora impreciso e problemático, o uso do conceito de terceiro setor tem crescido como consequência das perversas políticas neoliberais que ocasionam desemprego, precariedade do trabalho, pobreza e indigênciapor.

FELIPE LUIZ GOMES E SILVA é professor aposentado de Gestão, Políticas Públicas e Terceiro Setor para os cursos de Ciências Sociais, Economia e Administração Pública da Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Letras, campus de Araraquara. Autor do livro A fábrica como agência educativa (Editora Cultura Acadêmica, Unesp - Araraquara, 2001). E-mail: felipeluizgomes@terra.com.br


O que é "terceiro setor" afinal? Para Fernandes (1997), é uma expressão de linguagem que foi traduzida da língua inglesa, sendo "portadora de uma ambiciosa mensagem: além do Estado e do mercado há um terceiro personagem". Ao lado dos sindicatos e de várias associações profissionais há outros recortes associativos que não se estruturam segundo a clássica divisão capital versus trabalho. Segundo Coelho (2000), esta expressão foi usada pela primeira vez na década de 1970 por pesquisadores estadunidenses. No entanto, há indicações de que o termo tenha surgido, inicialmente, como uma referência feita pelo magnata John Rockfeller à vitalidade da comunidade estadunidense (LANDIM, 1999).
Sabemos que qualquer conceito é apenas uma aproximação da realidade, a qual pode se manifestar de variadas formas. Dependendo do contexto histórico, social e político, do tempo e do lugar; a palavra é um instrumento ideológico por excelência (BAKHTIN, 1997). Veja quadro Definição de setores.
Como exemplos de instituições que pertencem ao "terceiro setor" podemos citar a Fundação Abrinq (São Paulo), o Projeto Axé de Educação Infantil e Adolescente (Salvador), o Orfanato Renascer (Araraquara), o Instituto Ethos (São Paulo) e também todo um conjunto de entidades assistenciais e caritativas que compete entre si na busca de recursos financeiros e de parcerias no mercado solidário.
Em razão da diversidade de instituições e de objetivos, a noção de "terceiro setor" é imprecisa e problemática. Para nós, a questão não se resume a uma mera dificuldade formal de classificação, como já apontamos anteriormente, resulta de seu "caráter eminentemente ideológico"; no sentido de ocultar a realidade concreta, ou seja, a não superação do mundo da aparência.
As organizações abrangidas por essa noção são diversas e diferenciadas, heterogêneas e até contraditórias. Apresentam diferenças em suas origens históricas, em suas finalidades, em suas maneiras de se relacionar com o Estado, com a sociedade e com o mercado. De modo geral, têm seu campo de trabalho limitado e condicionado pelas fontes de financiamento e pelo nível de pobreza presente nas diversas nações e regiões (SILVA, 2004).

Os donos do capital deverão reduzir a jornada de trabalho e investir em ações comunitárias solidárias.

DE ACORDO COM Oliveira (1995), as Organizações Não Governamentais, por exemplo, "são importantes elementos de ativação da sociedade em geral, quando fazem o trabalho de passagem das carências para os direitos".
Indagamos: quantas organizações, de fato, superam o assistencialismo, realizam os direitos sociais e ultrapassam a filantropia e/ou mero gerenciamento da pobreza? Ressaltemos que, para Fernandes (1994), o "terceiro setor" não pretende substituir a ação do Estado, a sua dinâmica deve ser complementar; é fruto das insuficiências e dos limites da atuação do mercado.
Mas independentemente da vontade e das boas ações humanas, o denominado "terceiro setor" tem, na realidade, crescido em consequência das perversas políticas neoliberais. Com a "crise" do Estado de Bem- Estar Social (nos países centrais) e do Estado Desenvolvimentista (nos países periféricos), a ideologia do "terceiro setor" passa a ser funcional/ operacional às políticas do capitalismo neoliberal, ocultando as raízes estruturais do desemprego, da precariedade do trabalho, da pobreza e da indigência (MONTÃNO, 2002; SILVA, 2004, 2006).Os voluntários que atuam no denominado "terceiro setor" contra a fome e a miséria, só na aparência são livres cidadãos.
A questão fundamental é: sem romper com o modo de produção capitalista, será possível combater a indigência e construir uma nova sociabilidade humana por meio das ações do primeiro, segundo e terceiro setores?
Para Claus Off e a resposta é positiva. Uma nova sociabilidade será construída mediante uma sintonia fina entre o primeiro, segundo e terceiro setores. Atores coletivos da sociedade civil demarcarão as fronteiras e a relação entre o Estado, o mercado e o "terceiro setor". Todos comporão, de forma harmônica, um arranjo social novo e superior. Grande parte dos desempregados será cuidada pela solidariedade religiosa (1999, apud SILVA, 2006).
O estadunidense J. Rifkin também defende a tese da possibilidade de humanizar o capitalismo por meio da articulação dos três setores. Os donos do capital, as corporações, deverão reduzir a jornada do trabalho e investir em ações comunitárias solidárias. Para ele, com o crescimento do desemprego estrutural e da miséria, estamos diante de dois riscos: o crescimento da população carcerária e a emergência de ideologias políticas extremistas.
Só as ações do "terceiro setor" salvarão o capitalismo e a democracia (RIFKIN,1997). Como é evidente, o acelerado crescimento do chamado "terceiro setor" é fruto da lógica da acumulação ampliada do capital, do aumento da população que vive no inferno da indigência e que constitui o peso morto do exército de reserva - que, segundo R. Castel (1998), são os supranumerários, os não empregáveis considerados inúteis para o mundo.
Em 1988, na França, somente um estagiário em quatro, e um trabalhador precário em três encontraram um emprego estável ao final de um ano. Sendo assim, a expressão "interino permanente" não é um jogo de palavras.

Os Estados Unidos apresentam a vigésima taxa de mortalidade infantil do mundo e 5 milhões de sem-teto.

No Brasil, por exemplo, são gastos R$ 7 bilhões com 11,1 milhões de famílias integradas no Programa Bolsa Família, enquanto R$ 110 bilhões remuneram os poderosos detentores dos títulos da dívida pública. Entre janeiro de 2003 e outubro de 2006, as empresas transnacionais, sediadas no País, repatriaram nada menos do que US$ 18,9 bilhões, 112% a mais do que a era Fernando Henrique Cardoso (1998-2002).
O pauperismo e a indigência (superpopulação supérflua) da América Latina e do "terceiro-mundo" somente serão superados com a construção de uma nova sociabilidade humana livre da lógica da acumulação, do desenvolvimento das forças destrutivas e da dependência do capital mundial.
O assistencialismo, a mera caridade legal e a filantropia,práticas inerentes ao chamado "terceiro setor" e às políticas "pseudoliberais" (SARTRE, 1987) talvez possam, por algum tempo, "animar" parte da sociedade e amenizar o sofrimento humano como simples efeito curativo (KURZ, 1997).
Definição dos setores.
O pesquisador Rubem C. Fernandes (1994) assim demarca as fronteiras entre o "Primeiro, Segundo e Terceiro Setores": Como podemos observar, definido pelos seus fins, o denominado "terceiro setor" é composto por agentes privados que buscam a realização de objetivos coletivos e/ou públicos. Desta forma, há, segundo esse autor, clara coincidência com os objetivos do Estado.
O segundo setor é organicamente composto por agentes que buscam objetivos privados, ou seja, orienta-se, primariamente, pelos interesses do mercado, pauta-se pela competição e pelos lucros. Quando os agentes estatais buscam fins privados encontram-se no espaço da corrupção. Dito de outra forma, as condutas pautam-se pelas "políticas de favores", pelo clientelismo, nepotismo e personalismo.
Afirma Fernandes (1994) que o "terceiro setor" denota um conjunto de organizações e iniciativas privadas que visam à produção de bens e serviços públicos. Este é o sentido positivo da expressão. Bens e serviços públicos, neste caso, implicam uma dupla qualifi- cação: não geram lucros e respondem a necessidades coletivas. "O conceito é certamente amplo e passível de qualificações sob diversos aspectos. As variações ocorrem, e os casos fronteiriços suscitam disputas polêmicas, como acontece com qualquer classificação".
As pesquisas do Observatório Urbano das Nações Unidas (ONU) alertam que, em 2020, a pobreza no mundo atingirá 45% do total de habitantes das cidades.

MAS NEM COMO efeito curativo tem cumprido sua promessa de incluir no mercado formal os desempregados. A produção em escala de trabalhadores precários no terceiro-mundo e na América Latina tem sido acelerada pela aplicação dos Planos de Ajustes Estruturais (superávit fiscal, redução do déficit da balança comercial, desmontagem da previdência, liberalização financeira e comercial, [des] regulamentação dos mercados e a privatização das empresas estatais) "recomendados" pelo Banco Mundial. As pesquisas do Observatório Urbano das Nações Unidas (ONU) alertam que, em 2020, a pobreza no mundo atingirá cerca de 45% do total de habitantes das cidades.
Em Lagos, Nigéria, a classe média desapareceu, o lixo produzido pelos poucos e cada vez mais ricos compõe a cesta de alimentos que frequenta a mesa dos trabalhadores pobres. No Brasil, o denominado mercado informal já atinge mais de 51% da população, na América Latina, 57% e na África, 95% (DAVIS, 2004).
Dificilmente os agentes e os pesquisadores universitários que apoiam as ações do "terceiro setor" perguntam quais são as origens históricas e estruturais da pobreza e da miséria dos países dependentes. É preciso não abandonar a visão de totalidade social e considerar que o local não pode ser entendido como divorciado do mundial e, principalmente, da livre presença das transnacionais e das transações financeiras globais que, junto com os Programas de Ajuste Estrutural (PAEs), recomendados pelo Banco Mundial, provocam devastadores ciclones sociais (DAVIS, 2004; MÉSZÁ- ROS, 2006).
Muitas empresas praticam o denominado "marketing do bem" e a "solidariedade que aparece"
Atualmente, cerca de 180 milhões de pessoas estão em evidente situação de desemprego aberto. Mesmo nos Estados Unidos da América, lócus privilegiado das ações ditas solidárias, o "terceiro setor" não superou os problemas sociais: hoje, eles possuem a 20ª taxa de mortalidade infantil do mundo, 1/3 das crianças em idade escolar está sem vacinas básicas, 31 milhões de seres humanos não têm cobertura de saúde, há 5 milhões de sem-tetos, etc. (PETRAS,1996).
As ações locais, com ou sem apoio das corporações e do Banco Mundial, são limitadas e não questionam as raízes estruturais do desemprego, da pobreza e da precariedade do trabalho. Muitas empresas, na realidade, enquanto praticam o denominado"marketing do bem" e a "solidariedade que aparece" (BUCCI, 2004), exploram ao máximo os seres humanos e os recursos naturais da América Latina e do terceiro-mundo.
Muitas destas ações corporativas têm por objetivos claros "educar" lideranças rebeldes e prevenir a emergência de lutas sociais radicais. "São proponentes de novos contratos que restabelecem vínculos de solidariedade transclassistas e comunidades pensadas com inteira abstração dos "novos" dispositivos de exploração do trabalho (NETTO, 2005), a "flexploração" e a terceirização dos operários (SILVA, 2004). Será possível realizar, no século XXI, a utopia da cidadania plena - igualdade, fraternidade e liberdade - no interior da ordem social capitalista contemporânea?

Portal Ciência e Vida (Revista Sociologia Nº 23)












domingo, 14 de junho de 2009

Antropologia - Sociologia da emoções


Antropologia

Sociologia das emoções

Mais do que uma questão meramente biológica, as emoções podem ser analisadas sob o ponto de vista socioantropológico. O sentimento como fenômeno resultante de processos sociais.



Por EMERSON SENA DA SILVEIRA é antropólogo, doutor em Ciência da Religião (Univ. Fed. de Juiz de Fora - MG) e pós-doutorando em Antropologia (CNPq-PPCIR-UFJF). Autor do livro Corpo, emoção e rito: Antropologia dos carismáticos católicos (Porto Alegre: Armazém, 2008). Contato:mailto:emerson.pesquisa@gmail.com


As emoções entre as mulheres e os homens despontam nas revistas científicas e não científicas como objeto da Psicologia, da Biologia, da Neurologia e da Psiquiatria. Há muitos escritos abordando a natureza inata das emoções, o caráter genético de certos comportamentos emocionais (ódio, amor, inveja) ou, ainda, a profundidade, a manipulação ou a perversão do sentimento.
Alguns livros, oriundos da literatura erudita de autoajuda (Por que os homens mentem e as mulheres choram?), apresentam argumentos das ciências biológicas e da saúde sem o necessário debate e confronto com outras pesquisas e com as ciências sociais/humanas, repetindo, assim, ideias batidas e sem criatividade.
Paralelamente, o senso comum consagra esta divisão de tarefas emocionais: aos homens caberia a razão prática e o controle emocional, e às mulheres a emoção expandida e a paixão. Nada mais falso do que essa imagem, apesar das afirmações recentes da Psiquiatria e das ciências médicas ao "descobrirem" o poder dos hormônios ou a diferença das estruturas cerebrais.
Infelizmente, os sentimentos têm sido reduzidos a uma questão pessoal ou meramente biológica quando, na verdade, é possível falar de emoção entre classes sociais, gerações e outros agrupamentos sociais.
O sociólogo Norbert Elias (1897-1920), nos livros O processo civilizador e Sociedade de Corte, apesar de não construir uma Sociologia das emoções como campo científico, propõe no âmbito de uma "educação civilizatória", reflexões em que os sentimentos estão associados às formas civilizacionais assumidas pelas sociedades ao longo da história.
Assim, se pudéssemos transportar pessoas que viveram em outras épocas e civilizações para uma viagem no tempo, perceberíamos toda uma gama de sentimentos muito diferentes, mas intensos. Tomemos, por exemplo, o hábito, no Brasil Império, de colocar escarradeiras na sala para recolher o pigarro dos moradores e visitantes. Isso causaria nojo aos homens e mulheres contemporâneos, da mesma forma que certos hábitos atuais suscitariam horror, vergonha e ódio nos homens e mulheres do Brasil naquela época.
Dessa forma, para Norbert Elias, o desenvolvimento da noção de civilização na Europa, com toda sua sustentação social e econômica, correspondeu, simultaneamente, ao aumento do sentimento de vergonha e do nojo e da tendência de esconder, nos bastidores da vida social, a causa desses sentimentos.
A ideia de refinamento dos costumes, do autocontrole emocional e da higiene pessoal e pública surge como ideal da civilização ocidental, ampliando a fronteira entre privado e público, bem diferente dos costumes, e óbvio, dos sentimentos vividos na Idade Média.
Por isso, é possível, sem menosprezar as investigações das ciências médicas sobre o peso das estruturas biológicas e genéticas, afirmar que os sentimentos e suas formas de se manifestar são também elementos sociais, estruturantes da forma como interagimos, presentes na virulência dos preconceitos sociais ou na suavidade da ternura a dois.
Porém, a sisuda Sociologia continental ou europeia quase não deu atenção direta a esse aspecto fundamental da vida em sociedade. Não era a preocupação central de Durkheim (1858-1917), Weber (1864-1920) e Marx (1818-1883) (consagrada "trilogia" das Ciências Sociais), mas é importante notar que, apesar de não haver uma preocupação direta com as emoções, é possível ler, nas entrelinhas de seus escritos, ou até mesmo em textos "menores", reflexões bastante expressivas.
É possível perguntar, a partir das questões suscitadas por uma Sociologia das emoções, como os autores "clássicos" resolveram a questão da subjetividade no arcabouço teórico que construíram.
Durkheim, acusado (ou elogiado) de ser o "pai" do positivismo nas Ciências Sociais, escreveu textos e livros nos quais aborda uma "Sociologia do simbólico". Dentre eles está o relativamente pouco conhecido As formas elementares da vida religiosa, um dos últimos livros publicados. A leitura desse livro relativiza o rótulo de "pai do positivismo sociológico". Durkheim, ao analisar os rituais das tribos australianas (sua dinamogenia), por meio de relatos de viajantes e missionários, coloca a emoção como parte indissociável da estrutura social. O ritual de celebração dos totens tribais teria como tarefa essencial perpetuar na memória dos homens a emoção original que os mobilizou e os fundou como sociedade. Em outras palavras, a emoção é resultante do estado de sociedade, condição sem a qual o homem não pode existir. Já no livro O suicídio, Durkheim apresenta os sentimentos, emoldurados por sua Sociologia, como fenômenos resultantes de processos sociais amplos de solidariedade e anomia, decorrentes da divisão social do trabalho.
Próximo a essa perspectiva "externalista" e estrutural, situa-se Karl Marx, para quem a individualidade psicológica e as emoções (raiva, inveja, ira) são frutos das relações de produção e das forças produtivas. As classes sociais e os conflitos decorrentes da guerra gerados entre as mesmas caracterizariam os sentimentos, determinados pela marcha histórica da "luta de classes".
A emoção deveria ser tratada sob o aspecto das diferenças entre classes sociais, gerações e outros agrupamentos
Para Durkheim e Marx, o eu individual ou o self, não existem como expressão concreta, mas como expressão de estruturas e de coletividades abstratas.
Em Weber, o austero puritano, tipo ideal que emerge das páginas da Ética protestante e o Espírito do Capitalismo, é uma figura na qual o controle das emoções é o ápice de um processo psicossociológico. O senso de frugalidade e do dever está relacionado, intimamente, à emoção e às formas de contê-la. O desfrute emocional será obtido, paradoxalmente, do esforço de autocontrole. Alguns irão dizer: "nada é mais prazeroso do que a sensação do dever cumprido". Isso é também uma forma emotiva.
Para Weber, a evolução das éticas religiosas que embasam as religiões mundiais resulta na multiplicidade de formas de explicação dos sofrimentos como o mal e a dor. Essas tentativas, chamadas de teodiceias, orientam as ações dos indivíduos. Por elas, é possível compreender, por exemplo, o porquê da serenidade de um budista diante da morte iminente, a sua extrema compaixão por qualquer forma de vida ou o orgulho triunfante do puritano ao trabalhar e buscar, na poupança e no seu reinvestimento em atividades "produtivas", respostas às suas angústias.
Poucos foram os sociólogos que, na virada do século XIX e início do século XX, dedicaram-se às pesquisas sobre as complexidades do sentimento humano. Dentre eles, citamos George Simmel (1858-1918) e Marcel Mauss (1872-1950), sobrinho de Émile Durkheim.
De Simmel (2006), temos reflexões muito interessantes no livro Filosofia do amor, uma reunião de diversos ensaios em que é analisado o papel do dinheiro na relação entre os sexos e o amor, consagrado como o mais nobre sentimento que homens e mulheres podem expressar. Com rara sensibilidade, Simmel traça uma trama conceitual em que, Sociologia e Filosofia, dialogam entre si. Simmel (2006, p. 117), dentre outras coisas, analisa os paradoxos do amor: "o milagre do amor é justamente não abolir o ser-pa-ra-si nem do eu nem do tu, fazer dele inclusive a condição que permite essa supressão da distância, esse fechar-se egoísta em si mesmo do querer-viver. Isso é algo totalmente irracional, que se subtrai à lógica das categorias habitualmente válidas".


DE MARCEL MAUSS (OLIVEIRA, 1979) temos estudos criativos, dentre os quais o pequeno texto A expressão obrigatória de sentimentos, publicado em 1921, que ajuda a compreender a emoção como uma totalidade em que aspectos fisiológicos, psicológicos e sociais estão fundidos numa só realidade ou totalidade. Analisando rituais orais funerários (choros, gritos, berros cantos, etc.) de populações tribais da Austrália, Mauss (OLIVEIRA, 1979, p.146) afirma: "Não só o choro, mas toda uma série de expressões orais de sentimentos não são fenômenos exclusivamente psicológicos ou fisiológicos, mas sim fenômenos sociais, marcados por manifestações não espontâneas e da mais perfeita obrigação".
Ao analisar outras épocas e civilizações percebemos que os sentimentos se transformam
Nada mais falso do que atribuir aos homens sentimentos que levem apenas ao controle emocional, e às mulheres a emoção expandida e a paixão. os sentimentos não podem ser reduzidos a uma questão pessoal ou meramente biológica
Emoções enlatadas
O amar, o odiar, o invejar são atitudes e linguagens em que o social é construído. Esses sentimentos são linguagens "embrulhadas" pelos meios de comunicação (TV, rádio, internet), experimentadas nas extenuantes batalhas de vários atores sociais antagônicos e cruéis, contendores, são os meios que usamos para viver.
Do ato de louvar ao Deus da fé à compra de um produto de beleza; do empunhar uma faca à mão estendida ao mendigo, a emoção emerge como campo da intersubjetividade dos homens e mulheres dos tempos idos e dos tempos atuais. Na música ou na guerra, na lida diária ou nas celebrações esportivas, nas festas ou nos teatros, os sentimentos são eixos da convivência entre pessoas, famílias, grupos sociais, tribos pequenas e correntes planetárias de classes sociais.
Assim, segundo Mauss, alguns sentimentos, em especial os manifestados perante a morte e o funeral de uma pessoa, são "obrigações morais", mais do que simples manifestações espontâneas de tristeza individual. Os gritos e cantos funerários são necessários porque só o grupo pode entendê-los. Conforme Mauss (OLIVEIRA, 1979, p. 151): "é mais do que uma manifestação dos próprios sentimentos, é um modo de manifestá-los aos outros, pois assim é preciso fazer. Manifestar-se a si, exprimindo aos outros, por conta dos outros. É essencialmente uma ação simbólica".
Um destaque pode ser feito para a Sociologia norte-americana, especialmente em sua vertente microssociológica, por trazer novas abordagens ao estatuto do sentimento. Destaca-se Erving Goff man (1922-1982) e seus trabalhos sobre estigmatização social e vergonha. Num famoso estudo (Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: Zahar, 1982), Goff man analisa depoimentos de pessoas que tiveram a face dilacerada, por acidente ou por questões congênitas, e conclui que a face está intimamente ligada à própria dignidade. Perdê-la conduz as pessoas à humilhação, com todos os sentimentos associados: baixa autoestima, autorrejeição, dor moral intensa e vergonha.
Para Goff man, cada pessoa trava uma luta permanente para manter a sua face/dignidade ao empreender a "gerência da impressão" ou tentativa de controlar as impressões de si e do outro sobre si. Essas tentativas podem ser compreendidas como "representações do eu na vida cotidiana" ou dramaturgias interativas. Mas a "manipulação" das impressões falha com incômoda frequência, produzindo nas pessoas o embaraço (constrangimento) ou a humilhação, mesmo que esse controle das impressões esteja orientado para manter ou recuperar a face/ dignidade de outra pessoa.
A flexibilidade permitida pelos relacionamentos em rede afetou a capacidade das pessoas de cultivarem relacionamentos, comunitários e pessoais, de longo prazo e de aceitarem os fracassados socialmente
EMBORA O FOCO do trabalho não seja a emoção como objeto distinto, recortado e explícito, outra importante contribuição vem da Antropologia norte-americana, especialmente da chamawda Escola de Cultura e Personalidade. No interior das reflexões suscitadas por essa escola são formulados estudos que fornecem uma "agenda forte" ao importante estatuto do sentimento na vida social. Alguns pensadores, dentre os quais as antropólogas Ruth Benedict (1887-1948) e Margaret Mead (1901-1978), abordaram a interface entre os sistemas culturais e as personalidades.
A ideia de refinamento dos costumes e do autocontrole emocional surge como ideal da civilização ocidental
Os sentimentos se transformam com o tempo: se antes espartilhos apertados significavam beleza e status, hoje, tais vestimentas causariam riso e horror às mulheres
Ressaltamos dois estudos clássicos dessas antropólogas: O crisântemo e a espada, de Benedict, e Sexo e temperamento em três sociedades primitivas, de Mead. O primeiro trata da cultura japonesa e a forma como as emoções da honra e da vergonha são construídas. Nesse sentido, o próprio título do livro remete a símbolos extremamente importantes para os japoneses e, por isso mesmo, carregados de densidade emotiva: o crisântemo associa-se à apurada preocupação estética e a espada, à índole guerreira. O segundo aborda as noções de gênero (masculino e feminino) e os temperamentos associados, desconstruindo a atribuição ingênua de certos comportamentos a homens e a mulheres por conta de suas diferentes estruturas biológicas.
Outro famoso livro de Mead, Adolescência, sexo e cultura em Samoa, embora sofra sérias críticas metodológicas que o colocam em dúvida (os informantes e seus dados são questionados), propõe questões muito pertinentes para uma Sociologia e uma Antropologia das emoções.
Outros estudos de Benedict distinguem culturas dionisíacas (centradas no êxtase, na expansão dos sentimentos, na valorização da espontaneidade) e apolíneas (estruturadas no desejo de moderação, na extrema contenção e regulação).
Um dado interessante é que dentro das pesquisas dessa escola é perceptível o diálogo, às vezes tenso, com a Psicanálise freudiana que aprofundou a compreensão da dimensão psicológica do desejo e do afeto humano. Só para lembrar, um tema que acirrou debates, e ainda acirra: a suposta universalidade do complexo de Édipo, defendida pela Psicanálise e relativizada pela Antropologia.
O livro de Mead (Adolescência, sexo e cultura em Samoa), situado no quadro dos debates entre Psicanálise e Antropologia, parte da seguinte questão: a rebeldia e a angústia da repressão sexual entre os adolescentes norte-americanos são características da personalidade na cultura ou são elementos psicobiológicos universais válidos para qualquer adolescente, em qualquer cultura?


ANALISANDO AS PRÁTICAS sexuais de adolescentes de Samoa, Mead argumenta que as angústias da adolescência não são universais. Segundo a antropóloga, a passagem da infância à adolescência em Samoa era uma transição suave, sem as tensões, ansiedades e confusões observadas nos adolescentes norte-americanos.
Hoje, porém, muitos antropólogos pós-modernistas criticam o ocultamento das relações de poder e da política na Antropologia e nas ciências humanas e sociais. Dizem que a pesquisa de Benedict foi financiada pelo Ministério da Guerra dos EUA. Para essa corrente antropológica, a emoção, nesse sentido, é incorporada a uma agenda "política". O sentir não poderia, portanto, ser dissociado das "estruturações" do poder, do colonialismo e de outras configurações do político.
Rituais de morte, como o funeral, são mais do que simples manifestações, são, para Marcel Mauss, "obrigações morais"
Mais recentemente, um estudo brilhante do sociólogo francês David Le Breton (2007) retoma tradições filosóficas como a fenomenologia de Merleau-Ponty e analisa a relação entre as formas de perceber/sentir e as estruturas sociais. Cada sociedade configura um modelo sensorial próprio, singularizado pelas e nas experiências e intervinculações dos indivíduos. Para Le Breton (2007), qualquer tipo de socialização é também a disciplina/domesticação da sensorialidade e de suas características biopsicológicas.
As percepções olfativas, visuais, auditivas ou gustativas são marcas na memória, feitas pela emoção e articuladas pelos indivíduos no mundo social. Os dados fornecidos pelos sentidos são registrados por eventos significativos na vivência do indivíduo e, assim, reconstituem e instituem a temporalidade. A rememoração ou evocação de diversas emoções possíveis atrela-se, portanto, à memória. Nesse sentido, é interessante perceber que memória, emoção e sentido (paladar, olfato, audição, etc.) são, visceralmente, interligados. Sentir um perfume e ouvir uma canção pode evocar lembranças e, com elas, sentimentos. Por isso, o nexo entre memória e emoção é importante.
Pode não ser intencional, mas atitudes repetitivas de atender ao telefone durante uma reunião ou um encontro, por exemplo, redundam em humilhação e aumentam a percepção desse sentimento por parte da pessoa "desprezada"
Mas há uma polêmica "no ar". Hoje, sabe-se que é possível "plantar" memórias inexistentes nos indivíduos. Em 2009, um grupo de cientistas americanos conseguiu, a partir de técnicas de indução, que alguns indivíduos realmente acreditassem, piamente, em lembranças completamente impossíveis e falsas. No caso da experiência desses cientistas, os indivíduos alegaram que, durante a infância, foram lambidos pelo cachorro Pluto, do desenho animado de Walt Disney, em carne, pelo, osso e saliva. E as emoções? Corresponderam a essa memória? Não se sabe.
Para Le Breton, os caminhos da "sociabilidade sensória" variam de acordo com cada tipo de sociedade. Para provar a existência de modelos sensoriais distintos, Le Breton (2007) analisa como no Mundo Ocidental Moderno o olhar adquiriu supremacia ante outros sentidos.
Historicamente, a ideia de individualidade relaciona-se à visão (LE BRETON, 2007) e se consolida na Renascença. Por exemplo, pela difusão e ascensão, na pintura, dos retratos e autorretratos. Neste momento histórico, a sociedade ocidental celebra a visão e elege, simultaneamente, a cegueira como o pior estigma. É a visão o sentido eleito para ser o traço diferenciador dos indivíduos, ou seja, aquilo que separa o "eu", do "nós".


As percepções dos cinco sentidos são marcas na memória, feitas pela emoção dos indivíduos no mundo

O sentido da visão passa a ser associado, dessa forma, à verdade, e daí aos sentimentos. As lágrimas serão vistas como cristalizações da dor, do sofrimento, da revolta e da indignação do indivíduo em face do fardo da existência ou da opressão do sistema. Mas o amor e a solidariedade passam também pelo olhar. A paixão acontece no olhar-se. Aos outros sentidos, é reservado um papel secundário na estruturação das identidades sociais e individuais. Destaca-se aqui, o tato, ligado à sensualidade e ao erotismo, dissociados, ou domesticados, em muitas visões religiosas, do amor. A visão é percebida, então, como a "janela interior" (os olhos "revelam" a "interioridade", as "verdadeiras" emoções) e eleita como o elemento mais nobre dos sentidos. Porém, muitos povos não ocidentais escolheram outros sentidos, o olfato e a audição, por exemplo, como os mais nobres, e conduziram suas relações sociais e identitárias com base nessa escolha.
No Brasil, antes mesmo da formação da Sociologia das emoções como campo disciplinar, emergiram reflexões que tratavam de temas, tangenciavam ou mesmo abordavam o estatuto do sentimento. Para citar dois autores, dentre muitos, Gilberto Freyre (1900-1987) e Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982).
Sociologia da Emoção no Brasil
O Grupo de Pesquisa em Antropologia e Sociologia da Emoção (GREM), da Universidade Federal da Paraíba é um dos raros núcleos de estudos e pesquisas brasileiros sobre emoção. Fundado em 1994, é liderado por Mauro Guilherme Pinheiro Koury e mantém um blog (http://gremsociologiaantropologia.blogspot.com//) e a Revista Brasileira de Sociologia das Emoções. Dentre as linhas de pesquisa do grupo estão os rituais da morte, luto e sociedade e medos urbanos, violência, ruínas e construção das cidades.
Por abordar os costumes, hábitos e o cotidiano na Casa Grande e na Senzala, nos Sobrados e Mucambos, e entre a Ordem e o Progresso, a dimensão do afeto e da sexualidade emergem com mais intensidade em Gilberto Freyre. Dentre muitos exemplos de como Freyre analisa as relações sociais, pode-se citar o sentido do olfato, atrelado a sentimentos de inferioridade, nojo, embaraço, alegria ou amor. Freyre (2003, p. 418) diz: "Nos perfumes é que se prolongou, até quase nossos dias, a hierarquia da sociedade patriarcal brasileira não só quanto ao tipo de mulher - certos perfumes só se compreendem em 'cômicas' ou atrizes, nunca a senhoras honestas, outros só em mulatas, nunca em brancas finas - como quanto a classes e, menos rigidamente, quanto ao sexo". Em muitas outras análises saborosas, Freyre constrói um panorama cultural da identidade brasileira, emotiva por "nascimento" histórico-cultural.
A ideia de individualidade relaciona-se à visão e se consolida na renascença, na pintura dos retratos e autorretratos
Sérgio Buarque de Holanda, no famoso capítulo 4 do livro Raízes do Brasil, cujo título é O homem cordial constrói uma abordagem diferente, embasada num modelo em que, as estruturas sócio-históricas brasileiras são repensadas. Perdidos entre as formas tradicionais de dominação, patrimonialismo e patriarcalismo, os padrões civilizacionais modernos (cultura democrática) não vingaram no Brasil. Para Holanda, os padrões familiares contaminaram a estrutura social brasileira, fazendo da polidez uma tênue epiderme que disfarça a defesa dos interesses do clã ou do grupo ao qual se pertence por laços de intimidade ou por laços sanguíneos. As estruturas formalistas, racionais e burocráticas advindas com a modernidade, não conseguiram cortar esses laços de compadrio. Por isso, de alguns políticos se diz: "guardam mágoas em geladeira". E surgem alianças políticas, as mais esquisitas possíveis, bem como "adversários" que não deveriam se odiar, por se situarem dentro de uma estrutura ideológica e racional similar.
Cabe citar Zygmunt Bauman e seu livro Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Bauman analisa a "flexibilidade" permitida pelos relacionamentos em rede ou na internet. Esses relacionamentos nascidos nas "entranhas" cibernéticas das tecnologias de comunicação são criados e desmanchados com extrema rapidez e facilidade. Isso afetou gravemente, para Bauman, a capacidade de cultivar relacionamentos de longo prazo e, por extensão, os vínculos familiares, comunitários, amorosos e até mesmo a capacidade de aceitar o estrangeiro e o estranho. O desenvolvimento gigantesco do consumo e dos sistemas de comunicação eletrônicos (Messenger, chats, comunidades virtuais, etc.), tornou frágil a capacidade social de cultivar emoções e sentimentos necessários aos vínculos de longo prazo (confiança, paciência, tolerância e outros).


Alguns padrões emotivos trazem uma tênue epiderme que disfarça interesses escusos de muitos grupos sociais


A PERDA DA CAPACIDADE de cultivo de longo prazo, substituída pela emoção da velocidade e da "adrenalina" de conectar/desconectar, traz frustração e amargura, intensifica a insegurança e, por decorrência, a sensação de medo e abandono.
Infelizmente, uma forma de domar a crescente emoção social do medo, defendida pelos governos e sociedade dos EUA, Europa e de outros países, é a de projetar, nos imigrantes e refugiados, sentimentos de pavor e rejeição. Isso contribui para o isolamento social e aprofundamento de comportamentos agressivos e reativos, com toda gama de sentimentos associada: ódio racial, surtos de ira, indignidade e injustiça, abandono e vergonha.
Governos e sociedades projetam nos imigrantes e refugiados, sentimentos de horror e pavor, o que contribui para o isolamento social e aumento do terrorismo
ALGUNS SOCIÓLOGOS criticam a severidade dos juízos de valor em Bauman (2004). Haveria, segundo eles, um pessimismo injusto em parte, a respeito da relação entre emoção, meios de comunicação eletrônicos e padrões democráticos de civilização.
Por fim, é preciso frisar que na produção sociológica antes da década de 1970, não havia um campo delimitado e com produção específica chamado de "Sociologia das emoções". Koury e outros brasileiros serão praticamente os primeiros a realizar reflexões e pesquisas sobre a dor, o luto, a injustiça e o medo, dentro de uma "agenda de pesquisas" da Sociologia das emoções, emoldurada por abordagens e contribuições de inúmeros sociólogos e antropólogos, norte-americanos e europeus, dentre eles William Reddy.
Como se vê, há um "mundo" de autores e pesquisas a serem explorados no campo da Sociologia das emoções ou em autores que escreveram sobre temáticas próximas a esse campo. Mas isso é assunto para outros artigos.


Portal Ciência e Vida (Revista Sociologia Edição nº 23)

sábado, 23 de maio de 2009

Sociedade Vícios em profusão - Mal-estar contemporâneo


Sociedade vícios em profusão. Mal-estar contemporâneo Drogas, bebida, jogo, trabalho, exercício, sexo, comida. Nos tempos atuais, há cada vez mais pessoas viciadas nas mais diferentes possibilidades de adicção. Mas o que há por trás de tamanha compulsividade?


Mil e cem cigarros. Entre 1999 e 2002, essa foi a quantidade média consumida pelos brasileiros, por ano, no País, segundo dados da Secretaria da Receita Federal, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística e da Secretaria de Comércio Exterior. Um número que, ao contrário do que pode parecer à primeira vista, é até animador. Afinal, em 1986 o consumo atingiu a taxa recorde de quase 2 mil unidades, durante uma fase de expansão econômica. Tabagismo em declínio, eis o que os números revelam.


Apesar disso, não há muito mais a comemorar - sobretudo quando o leque de possibilidades que podem levar ao vício é aberto, apresentando cada vez mais opções. Segundo estudos do Conselho Federal de Farmácias, por exemplo, existe no Brasil um estabelecimento para cada 3 mil habitantes, ao passo que o sugerido pela Organização Mundial de Saúde é de apenas uma farmácia para cada 10 mil habitantes. Para especialistas, a estatística indica o uso indiscriminado de medicamentos pela população, um tipo de abuso, aliás, que já virou até tema de livro.
Em Tarja preta, personalidades como Jorge Mautner e Pedro Bial reuniram-se para contar histórias fictícias protagonizadas por personagens assumidamente dependentes de remédios de uso controlado. Porém, além de uso em excesso de tabaco e de medicamentos como Valium e Prozac, o Brasil - como muitos outros lugares do mundo - apresenta também consumo abusivo de álcool, drogas e muitos outros estimulantes.


Na modernidade, quando as garantias de segurança são enfraquecidas, os vícios se proliferam
Se pelo menos 1 milhão de pessoas, em São Paulo, são alcoólatras, segundo dados do Ministério da Saúde, e 1,2% da população entre 12 e 65 anos de 108 cidades brasileiras com mais de 200 mil habitantes pôde ser definida como dependente de maconha (de acordo com o Segundo Levantamento Domiciliar sobre o Uso de Drogas Psicotrópicas no Brasil, realizado em 2005), não há estatísticas para definir quantos são os viciados em trabalho, em exercícios, em sexo. Cada vez mais, no entanto, eles são retratados em matérias jornalísticas e fundam grupos de ajuda mútua, lançando questões: será esse fenômeno típico da modernidade? O que há por trás no aparente boom de dependentes e compulsivos?


Segundo o sociólogo Leonardo Mota, autor dos livros A dádiva da sobriedade: a ajuda mútua nos grupos de Alcoólicos Anônimos e Dependência química: problema biológico, psicológico ou social?, a noção de vício, nas últimas décadas, ultrapassou a questão do álcool e das drogas ilícitas, embora o seu modelo ainda seja inspirado nesse tipo de dependência. Para ele, existem alguns fatores que indicam que o número de pessoas viciadas, na sociedade moderna, tem aumentado se comparado a períodos históricos anteriores.


"Nos Estados Unidos, existe uma grande indústria em torno do tratamento de vícios, com uma enxurrada de propostas terapêuticas e clínicas de reabilitação para os mais diversos tipos de vícios: sexo, compras, exercícios, internet, drogas, celular, trabalho, dentre outros. Ultimamente, a partir da proliferação de artigos e reportagens na mídia sobre vícios, não creio ser um exagero dizer que os comportamentos compulsivos aumentaram em sua prevalência. Outro indicador é o significativo aumento de vários grupos de ajuda mútua baseados no modelo de Alcoólicos Anônimos, para tratar diversos vícios, compulsões, neuroses e outros problemas emocionais", explica o pesquisador, que recentemente defendeu tese de doutorado intitulada Pecado, crime ou doença? Representações sociais da dependência química, na Universidade Federal do Ceará. Mas o que estaria favorecendo, na sociedade atual, esse tipo de comportamento compulsivo? Leonardo Mota explica que, segundo o sociólogo britânico Anthony Giddens, o incremento dos vícios está associado a um processo de destradicionalização da população.


Nas sociedades pré-modernas, a tradição oferecia um apoio que estava ligado às rotinas da conduta cotidiana que raramente se modificavam. "Na modernidade, quando as garantias de segurança são enfraquecidas, os vícios se proliferam em virtude da ansiedade inerente a este cenário, o que fez surgir essa "sociedade compulsiva". No passado, é claro que existiam vícios, mas não na intensidade em que eles se apresentam hoje.

A imaginação sociológica diz que não há um indivíduo isolado de suas contingências sociais.


Atualmente, podemos dizer que eles se apresentam como um reflexo da insegurança endêmica que assola a sociedade contemporânea. Se as pessoas não podem mais prever sua rotina, ao menos o vício oferece alguma segurança por meio da repetição do comportamento compulsivo", explica Mota. Sob essa perspectiva, a questão do vício não deve ser vista de maneira isolada, mas como parte de um malestar contemporâneo que também fica evidente por outros problemas psiquiátricos, como a depressão, o transtorno obsessivo-compulsivo, a síndrome do pânico, a anorexia, a bulimia, etc. Existem, ainda, vários fatores envolvidos no surgimento de um vício: há os biológicos, os psicológicos e os sociais, dependendo do caso.


Entre esses últimos, por exemplo, está a disponibilidade de drogas, a pobreza, a cultura permissiva em relação ao uso de substâncias químicas em um círculo de amizade, a ausência de políticas sobre álcool, tabaco e drogas, além de mudanças sociais abruptas, dentre muitos outros. "Uma pesquisa realizada nos Estados Unidos com usuários de substâncias, semanas após o atentado de 11 de setembro de 2001, por exemplo, revelou aspectos interessantes sobre a relação entre consumo de drogas e estresse social. A pesquisa verificou que houve um aumento de quase 30% no consumo de álcool, maconha e tabaco nas primeiras semanas posteriores ao atentado ao World Trade Center, entre indivíduos que residiam nos arredores das torres gêmeas", relata Mota.


"Na clássica obra A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, Friedrich Engels (1820- 1895) já documentava o aumento dramático do alcoolismo entre os trabalhadores explorados da Inglaterra do século XIX. Portanto, existe uma relação entre o meio social e os vícios, sendo que muitas outras pesquisas atestam este componente da etiologia das dependências."

Armas no combate ao vício
No Brasil, existem enormes limitações relacionadas ao tratamento da dependência química, segundo Leonardo Mota. "Muitas instituições que oferecem esses serviços carecem de recursos humanos e materiais. Boa parte da população só vê a solução do problema das drogas pela via da repressão policial, o que já se mostrou ineficaz", explica o pesquisador.


Clínicas particulares são opções apenas para pessoas de classe média alta e muitos dependentes químicos pobres não conseguem vagas para internação. Além disso, os profissionais que trabalham nessa área recebem baixos salários, suas condições de trabalho são precárias e a qualificação técnica deixa a desejar. A atual legislação brasileira sobre drogas, porém, contempla várias ações do poder público para mudar essa realidade. Falta, no entanto, fazê-la acontecer.

APESAR DE o vício ser o resultado de múltiplos fatores - inclusive sociais, como mencionado -, é interessante notar que, por vezes, é o discurso médico ou psicológico - e não o das ciências sociais - que ganha um destaque maior na hora de interpretar esse fenômeno. Da mesma maneira, a responsabilidade por um indivíduo ter se tornado dependente de alguma substância ou atividade é, muitas vezes, colocada sobre a família, mas não compartilhada com a sociedade em geral. Entender a razão pela qual isso tudo ocorre também nos auxilia a compreender de forma mais ampla a questão.


"O discurso médico tem um enorme poder em nossa sociedade por causa do prestígio da profissão e de seus vínculos com a indústria farmacêutica. A indústria de bebidas alcoólicas também se beneficia da noção de que o alcoolismo depende somente de uma predisposição orgânica inerente ao indivíduo. Além disso, existe um reducionismo psicológico que coloca tudo em termos das relações familiares, como se a família não fosse afetada pelos atuais problemas sociais (embora muitos psiquiatras ou psicólogos reconheçam as limitações das "ciências do singular" e uma pessoa só se recupere de um vício por meio de uma decisão individual). É justamente aí que entra a imaginação sociológica, para nos dizer que não existe um indivíduo isolado de suas contingências sociais", explica Leonardo Mota.


O aumento dos comportamentos compulsivos, dentre eles o vício em compras, sexo e exercícios, estaria associado a um processo de destradicionalização da sociedade
Ainda hoje o vício é visto pelo prisma da moralidade, sendo atribuído à falta de caráter ou fraqueza.


Médicos, psicólogos e sociólogos, porém, enfrentam um problema comum ao lidar com a questão da dependência ou compulsão: o fato de, ainda hoje, esse problema ser visto pelo prisma da moralidade, atribuído à falta de caráter ou fraqueza de personalidade da pessoa envolvida. "Apesar dos esforços da comunidade científica em reverter essa apreciação do problema, ela permanece e somente piora o acesso dos dependentes a um tratamento conivente com a dignidade humana", alerta Mota.


Imersos em uma sociedade que, por um lado, estimula o uso de bebidas, de tabaco ou de estimulantes, assim como a prática de exercícios físicos, o consumo ou a competição no trabalho, dentre outras possibilidades, os indivíduos são também, paradoxalmente, desqualificados no meio social quando se tornam dependentes.


"Normalmente, a mesma sociedade que estimula o uso desqualifica a pessoa quando ela fica viciada", sintetiza Mota. É o viciado em compras que iniciou sua trajetória de consumo graças ao crédito fácil. Ou, no bar, o que viola as regras do "bom bebedor", em que eventuais pileques são permitidos e incentivados, mas a decadência social e financeira em consequência do alcoolismo é altamente condenada.

É claro que, como Leonardo Mota lembra, o comportamento de uma pessoa viciada em álcool e drogas geralmente causa uma série de danos interpessoais, provocando ressentimentos entre seus familiares e na comunidade. Portanto, as condenações a que são submetidos os dependentes químicos - ou mesmo os de outra natureza - não surgem ao acaso.

"Por outro lado, a sociedade sempre precisará de bodes expiatórios para escamotear suas próprias contradições e os dependentes químicos são ideais para esse tipo de produção de sentido. Trata-se de um fenômeno complexo que abarca muitos pontos de vista", afirma o pesquisador.


Problema em números - Já fizeram uso de qualquer droga, sem contar álcool e tabaco
Em 2005, a Secretaria Nacional Antidrogas realizou, em parceria com o Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas da Universidade Federal de São Paulo, o Segundo Levantamento Domiciliar sobre o Uso de Drogas Psicotrópicas no Brasil. Para que pudesse ser estimada a prevalência do uso de drogas lícitas e ilícitas no País, foram realizadas 7.939 entrevistas em 107 cidades de todo o território nacional com mais de 200 mil habitantes, além de Palmas, capital do Tocantins. O universo estudado correspondeu ao da população brasileira residente em municípios desse tipo, com faixa etária entre 12 e 65 anos de idade. A seguir, alguns dos dados obtidos.



Drogas mais usadas nas 108 cidades pesquisadas
O percentual da população pesquisada que já fez uso de drogas na vida (22,8%), exceto tabaco e álcool, corresponde a uma população de quase 11 milhões de pessoas. Em pesquisa semelhante realizada nos Estados Unidos, em 2004, essa porcentagem atinge 45,4% e, no Chile, 17,1%.
O percentual para uso na vida de maconha (8,8%) é bem menor que o registrado em países como Estados Unidos (40,2%), Reino Unido (30,8%), Dinamarca (24,3%), Espanha (22,2%) e Chile (22,4%), mas superior à Bélgica (5,8%) e Colômbia (5,4%). Surpreendentemente, o uso na vida de orexígenos (medicamentos utilizados para estimular o apetite) foi de 4,1%. Vale lembrar que não há controle para venda desse tipo de medicamento.



Dependentes de drogas nos municípios pesquisados*
O percentual de dependentes de álcool (12,3%) e de tabaco (10,1%) corresponde a populações de 5.799.005 e 4.700.635 de pessoas, respectivamente. *Os critérios adotados neste trabalho para diagnosticar dependência são menos rigorosos que os adotados pela Organização Mundial da Saúde, o que pode ter inflacionado os números.


Na faixa etária de 12 a 17 anos, foram apresentados relatos de uso das mais variadas drogas, bem como facilidade de acesso a elas e vivência de consumo próximo. Quase 8% dos jovens relataram já terem sido abordados por pessoas querendo vender droga. Um terço da população masculina com idade entre 12 e 17 anos declarou já ter sido submetida a tratamento para dependência de droga.

Trabalhar demais é um dos vícios que tendem a ser mais "aceitos" do que outros, embora isso não exclua o componente do sofrimento presente em qualquer tipo de dependência ou compulsão
TANTO É QUE há até mesmo alguns vícios que tendem a ser mais "aceitos" do que outros, embora isso não exclua o componente do sofrimento, sempre presente em qualquer tipo de dependência ou compulsão. Um workaholic, por exemplo, pode ser admirado pelo chefe e até obter prestígio e dinheiro por meio de seu vício. No entanto, seus relacionamentos com a família e os amigos tendem a se deteriorar com o seu isolamento no mundo do trabalho. Ainda assim, toda a sua dedicação pode não ser suficiente em um mundo de competição cada vez mais acirrada, que gera muita insegurança, por conta dos altos índices de desemprego e precarização do trabalho.

Da mesma maneira, um viciado em exercícios físicos pode ter status e poder de sedução com o seu corpo, mas sua vida emotiva pode estar em frangalhos, apesar da boa aparência física. Justamente por conta dessas múltiplas facetas, abordar a questão da dependência e dos vícios pelo âmbito da Sociologia é essencial para combater um problema carregado de estigmas e preconceitos, mas que pode atingir qualquer pessoa.

"Livrar-se dos tabus impostos pela sociedade é essencial para resgatar a condição humana daqueles que padecem de vícios e trazer essa questão para o debate público de forma racional", afirma Mota. "Embora não disponha de formação clínica, o papel do cientista social na análise, e até mesmo na intervenção nesta área, é fundamental. Aliás, quem ainda acredita que o aumento desses vícios não se constitui um sintoma social?"

Maria Figueira (Jornalista)

Portal Ciência e Vida (Revista de Sociologia)

sexta-feira, 15 de maio de 2009

Analfabetismo



Educação
Taxa de analfabetismo no Nordeste é quase o dobro da média nacional. Enquanto no Sul do país o percentual analfabetos representa pouco mais da metade da taxa, atingindo 5,4% da população, no Nordeste o índice é quase o dobro da média nacional, 19%.
Agência Brasil

As diferenças entre regiões brasileiras também têm reflexo nas taxas de analfabetismo. Enquanto no Sul do país o percentual de analfabetos representa pouco mais da metade da taxa brasileira, atingindo 5,4% da população, no Nordeste o índice é quase o dobro da média nacional, 19,9%. Os dados são da Pesquisa Nacional por amostras de Domicílios (Pnad) 2007, do Instituto Brasileira de Geografia e Estatística (IBGE).

Segundo especialistas, a relação existente entre analfabetismo e pobreza explica a maior incidência do problema nos estados nordestinos. “A pessoa pobre tem um acesso restrito à educação e a muitos outros direitos como saúde, habitação, saneamento básico. Então, onde há bolsões de pessoas de baixa renda, como no Nordeste, há bolsões de pessoas que não sabem ler e escrever”, explica o especialista em educação de jovens e adultos da Organização da Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) no Brasil, Timothy Ireland.

Para tentar diminuir o continente de analfabetos no Nordeste e, conseqüentemente, reduzir as disparidades regionais, o programa Brasil Alfabetizado, do Ministério da Educação (MEC), atende prioritariamente os municípios em que mais de 24% da população não sabe ler e escrever.

Este ano, participam do programa 1.928 pessoas. Desse total, 84% são da Região Nordeste. Entre estados, o que concentra o maior percentual de analfabetos é Alagoas, onde um em cada quatro habitantes com mais de 15 anos não sabe ler e escrever.

“No Nordeste você tem um tipo de problema, no sul, outro. Você tem problemas muito peculiares em cada região do país. Para cada uma delas é preciso uma estratégia específica. O Nordeste brasileiro sofreu uma migração forte nos últimos anos, então chegaram analfabetos”, aponta o secretário de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade do MEC, André Lázaro.

Para o presidente da organização não governamental Ação Educativa, Sérgio Haddad, é impossível zerar o analfabetismo no Brasil sem diminuir a exclusão social. “Em nenhum país do mundo você teve a superação do analfabetismo sem superar condições de pobreza absoluta. E no Brasil há Parcelas da população que vivem em situações de indigência”.

O pesquisador do instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), Marcelo Medeiros ressalta que o analfabetismo gera um ciclo de imobilidade social que envolve não só o indivíduo, mas sua família. “É um ciclo de reprodução. Se você for analfabeto, sua chance de também ser pobre é muito alta. Quem está nessa condição não tem qualificação para ocupar um bom posto de trabalho. Então se você for uma pessoa pouco educada e pobre, tem menor chance de ir para a escola ou de ter acesso a uma educação de qualidade. Você acaba criando um ciclo por um longo período”, Aponta

O ajudante-geral Manoel José dos Santos, 40 anos, morador de São Paulo, resolveu voltar a estudar justamente porque tinha dificuldade de encontrar emprego. Nascido em Benedito (PI), há seis anos freqüenta as aulas de alfabetização na Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP). Ele diz que já perdeu várias oportunidades profissionais por ser analfabeto, antes de ser contratado no prédio em que trabalha. ”Se tem uma vaga e seis pessoas disputando, vai levar quem sabe mais, não é?”, diz.

Hoje, é justamente quando anota recados ou separa as correspondências dos moradores de Santos se sente mais orgulhoso. Mas ele reconhece que precisa progredir um pouco nos estudos. Por causa do trabalho, ele não consegue ser assíduo e conta que já perdeu meses inteiros de aula. Apesar das dificuldades, o ajudante-geral está feliz porque pode procurar anúncios de emprego no jornal e checar endereços.

O pesquisador do IPEA alerta, no entanto, que a alfabetização não é suficiente para transformar a condição social e econômica dessas populações.
“A alfabetização é muito pouco, por isso as pessoas falam de letramento, que é um domínio das letras em um sentido mais amplo. Esse letramento é a base para você entrar em um sistema de aprendizado amplo. A gente precisa de muito mais para ter uma boa indicação no mercado de trabalho. Você tem que ter alguém preparado para aprender”, diz.

Foi em função da necessidade de trabalhar que o morador da periferia de Manaus Francisco Almeida, 64 anos, nunca conseguiu freqüentar uma escola. Assim como ele, 10% da população do Norte do país são analfabetos, a segunda maior taxa regional.

“É difícil sobreviver em um mundo cheio de números e letras, porque é como se isso tudo não existisse para nós. Mas existe para os outros”, lamenta Almeida, que começou a trabalhar aos 8 anos.
“Não sei ler, escrever nem telefonar, mas me viro para contar dinheiro e identificar as notas”, acrescenta.
Com orgulho, Chico, como é conhecido, diz que aprendeu a escrever seu nome, mas não considera a possibilidade de voltar a estudar. Ele já trabalhou como carregador em feiras, ajudante de caminhão, caseiro e pescador e, atualmente, vive da renda de um pequeno comércio de bebidas montado em casa.
“Continua sendo difícil trabalhar sem ler e escrever. Saber ler e escrever ajuda a ter uma vida melhor e melhores salários, mas não penso em voltar a estudar porque papagaio velho não aprende mais nada”, acredita.


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