sábado, 27 de junho de 2009

Desenvolvimento: para quê e para quem?


O grupo dominado, mas em vias de superação, tem a escolha de criar novos modos de produção, utilizar os recursos de maneira diferenciada
Roberta Traspadini

Durante os últimos 70 anos, muito se discute na América Latina sobre crescimento, desenvolvimento, qualidade de vida, sustentabilidade, Estado de direito, entre outros conceitos historicamente determinados. Cada um deles, inseridos na célula básica de confrontação entre visões de mundo distintas.
Como definem estes conceitos, sujeitos políticos de ideologias diferentes? O que está por trás de suas visões de mundo? Quais as implicações históricas de um atuar com base em uma matriz dominante de “desenvolvimento”?
Autores contemporâneos, pós-modernos, defendem que entre as duas visões que serão tratadas neste texto, existem outras várias possibilidades de compreensão sobre o mesmo tema. No entanto, não acreditamos em múltiplos caminhos possíveis, frutos da consolidação de uma coluna do meio, que mescle interesses. Acreditamos nas derivações táticas a partir destas duas visões de conteúdo estratégico de classe.
Temos um método, um modo de caminhar com base em uma explicação específica. É através deste método, o materialismo histórico dialético (MHD), que analisamos a situação concreta com o intuito de transformá-la. Mas este não é um método único, nem o dominante. Mas nem por isso, o menos importante.
Com base neste método, acreditamos que o mundo está dividido em duas classes específicas: os que são os donos privados dos fatores e meios de produção, e os que são donos da força de trabalho. Os primeiros, detentores do poder, tanto do capital, quanto do Estado, subestimam aos segundos, produtores reais da riqueza de um País.
É a visão de mundo de cada um destes grupos, e a subordinação de um ao outro, o que imprime, na realidade vivida, a concretização dos conteúdos. Vejamos como estas linhas interpretam os conceitos.

1. O que é desenvolvimento?
Alguns autores, políticos, burgueses, definem o desenvolvimento como a capacidade de promover o crescimento econômico – medido tanto pela produção interna de riqueza, quanto de renda -, e distribuí-lo de maneira eqüitativa. Nessa linha explicativa, crescer e desenvolver são duas facetas inseparáveis, mas a segunda está subordinada à primeira.
Já os autores, políticos, socialistas sustentam que desenvolver é a capacidade que o ser humano tem de promover uma transformação do meio, e de qualificação própria enquanto sujeito, para melhorar seu modo de vida, sem agredir e/ou colocar em xeque sua existência. Nesta linha argumentativa, desenvolvimento tem uma relação direta não com o crescimento, mas com a opção de modelo produtivo realizado.

2. É possível crescer e desenvolver ao mesmo tempo?
Para a primeira, modo central de realização de vida capitalista, a condição chave do processo de desenvolvimento vem da necessidade de consolidação do seu modo de produzir com fins mercantis, cujo objetivo maior é o afã de obter lucro a qualquer custo e por tempo (i)limitado.
Para a segunda, a condição chave está na possibilidade do ser humano, em harmonia com seu meio, no contexto histórico em que vive, rever substantivamente a proposta até então executada e dar um basta no modo depredador do meio, dos seres, do humano.

3. O que é sustentabilidade para estes grupos?
Para os capitalistas, sustentabilidade é a palavra encontrada no contexto histórico de colheita dos resultados catastróficos do capitalismo, para tentar encontrar soluções coletivas, tendo como base o uso individual permanente – em especial das corporaçãoes - como mecanismo reinante de perpetuação do seu suposto império.
Para os socialistas, sustentabilidade é a palavra chave de consolidação de um outro modelo superador do atual, cujo equilíbrio está no uso racional, não utilitarista dos fatores e meios de produção, assim como dos seres humanos não como recursos, mas como produtores e receptores únicos da vida.

4. E a qualidade de vida, como defendem?
Os capitalistas, baseados no seu espírito mercantil ampliado, cuja ética do individuo e da moral burguesa, levantaram as estruturas que relacionam qualidade de vida ao compromisso, ilimitado do ter, não importa o grau e a dimensão sustentável deste ter. A transformação do meio, da vida, do social em propriedade privada, cujos fins, mesmo quando aparecem sem objetivo lucrativo, não têm outra finalidade que não a de fazer dinheiro virar mais dinheiro. Para estes, a qualidade de vida é conseqüência do sucesso de implementar matrizes, copiadas, do processo de “desenvolvimento” das economias capitalistas tecnologicamente mais avançadas.
Os socialistas não conseguem dissociar qualidade de vida sem distribuição da riqueza e da renda, socialização e democratização dos fatores e meios de produção, finalização da opressão e exploração do trabalho e, substantivamente, a consolidação de uma renovada ética e moral pautadas no direito comum, social, frente a atual supremacia do direito individual. Para estes, a qualidade de vida tem a ver com a supremacia da vida sobre a mercadoria, do ser humano sobre o trabalhador escravizado, do Estado de transição sobre o moderno Estado de direito Burguês.

5. Quais as diferenças políticas entre os dois grupos?
O primeiro não quer mudar as bases que sustentam a histórica política depredadora do meio, cujo ente central de regulação da posse, foi, é, será o Estado, representante único na prática dos direitos das minorias populacionais que em realidade são maioria na concentração da riqueza e renda. Legitimam e legalizam as práticas de consolidação de um poder que, ainda quando é questionado na realidade concreta de sobrevivência das pessoas, não pode entrar, via mídia, numa brutal onda de deslegitimação sobre sua onipotência. Para estes, o nacional nada mais é do que a bandeira subordinada de um internacionalismo protagonizado pelo capital.
O segundo, reforça como projeto, a retomada não só do debate, mas da unificação de pautas que legitimem e legalizem a consolidação de um outro modelo produtivo de transição. Na transição, rumo a superação, o nacional que não poderá ser burguês, retoma as bases que o fazem ficar forte para, pouco a pouco, promover a necessária modificação do modelo. É popular porque as bases que o sustentam não são as da estrutura do capital e sim as dos reais promotores da geração de riqueza e renda mundiais: os trabalhadores formais e informais (a classe que vive do trabalho, e que por hora sobrevive da miséria humana condicionada por poucos proprietários, como definidores do destino de muitos).


6. Quais as implicações destes dois modos de conceber o desenvolvimento na sociedade atual?
As implicações do primeiro são a impossibilidade real da sociedade conseguir, nos próximos tempos, projetar seu futuro, sem que relegue a maioria a condição de miséria absoluta. Isto por sua vez, gerará um Estado cada vez mais parceiro do grande capital, cuja promoção máxima que poderá fazer do social, é dar, quando defina como funcional, assistência aos desfavorecidos, ao invés de romper com a estrutura que os desfavorece.
Já na pauta do segundo grupo, as implicações têm relação com a possibilidade de, em meio as catástrofes históricas implementadas pelo modelo dominante, estruturar, em unidade popular, a formação de uma consciência que dê um basta a exclusão, opressão, a condução do Estado de direito pelo capital. Um basta capaz de, após romper o grito frente a crise do humano em suas múltiplas dimensões, formar, na própria cotidianidade, um espaço de conscientização coletiva para não permitir que a informação siga deformando, como é mister ao longo do caminhar dominado pela minoria.
Os dois modelos tratam de escolhas, necessidades, produção e utilização dos recursos. O grupo dominante opta pela utilização (i)limitada e não regulada dos recursos naturais e do ser humano como mercadoria. Já o grupo dominado, mas em vias de superação, tem a escolha de criar novos modos de produção, utilizar os recursos de maneira diferenciada, gerar necessidades reais com base no humano e não no tecnológico inumanamente utilizado. Trata-se de uma opção: ou a continuidade da miséria humana, ou a elevação do humano, pelo trabalho digno, a um posto que resignifique a própria vida.

Roberta Traspadini é economista, Educadora popular, integrante da consulta popular/ES

sábado, 20 de junho de 2009

Terceiro setor: solução para desemprego ou efeito curativo?

Terceiro setor: solução para o desemprego ou efeito curativo? Embora impreciso e problemático, o uso do conceito de terceiro setor tem crescido como consequência das perversas políticas neoliberais que ocasionam desemprego, precariedade do trabalho, pobreza e indigênciapor.

FELIPE LUIZ GOMES E SILVA é professor aposentado de Gestão, Políticas Públicas e Terceiro Setor para os cursos de Ciências Sociais, Economia e Administração Pública da Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Letras, campus de Araraquara. Autor do livro A fábrica como agência educativa (Editora Cultura Acadêmica, Unesp - Araraquara, 2001). E-mail: felipeluizgomes@terra.com.br


O que é "terceiro setor" afinal? Para Fernandes (1997), é uma expressão de linguagem que foi traduzida da língua inglesa, sendo "portadora de uma ambiciosa mensagem: além do Estado e do mercado há um terceiro personagem". Ao lado dos sindicatos e de várias associações profissionais há outros recortes associativos que não se estruturam segundo a clássica divisão capital versus trabalho. Segundo Coelho (2000), esta expressão foi usada pela primeira vez na década de 1970 por pesquisadores estadunidenses. No entanto, há indicações de que o termo tenha surgido, inicialmente, como uma referência feita pelo magnata John Rockfeller à vitalidade da comunidade estadunidense (LANDIM, 1999).
Sabemos que qualquer conceito é apenas uma aproximação da realidade, a qual pode se manifestar de variadas formas. Dependendo do contexto histórico, social e político, do tempo e do lugar; a palavra é um instrumento ideológico por excelência (BAKHTIN, 1997). Veja quadro Definição de setores.
Como exemplos de instituições que pertencem ao "terceiro setor" podemos citar a Fundação Abrinq (São Paulo), o Projeto Axé de Educação Infantil e Adolescente (Salvador), o Orfanato Renascer (Araraquara), o Instituto Ethos (São Paulo) e também todo um conjunto de entidades assistenciais e caritativas que compete entre si na busca de recursos financeiros e de parcerias no mercado solidário.
Em razão da diversidade de instituições e de objetivos, a noção de "terceiro setor" é imprecisa e problemática. Para nós, a questão não se resume a uma mera dificuldade formal de classificação, como já apontamos anteriormente, resulta de seu "caráter eminentemente ideológico"; no sentido de ocultar a realidade concreta, ou seja, a não superação do mundo da aparência.
As organizações abrangidas por essa noção são diversas e diferenciadas, heterogêneas e até contraditórias. Apresentam diferenças em suas origens históricas, em suas finalidades, em suas maneiras de se relacionar com o Estado, com a sociedade e com o mercado. De modo geral, têm seu campo de trabalho limitado e condicionado pelas fontes de financiamento e pelo nível de pobreza presente nas diversas nações e regiões (SILVA, 2004).

Os donos do capital deverão reduzir a jornada de trabalho e investir em ações comunitárias solidárias.

DE ACORDO COM Oliveira (1995), as Organizações Não Governamentais, por exemplo, "são importantes elementos de ativação da sociedade em geral, quando fazem o trabalho de passagem das carências para os direitos".
Indagamos: quantas organizações, de fato, superam o assistencialismo, realizam os direitos sociais e ultrapassam a filantropia e/ou mero gerenciamento da pobreza? Ressaltemos que, para Fernandes (1994), o "terceiro setor" não pretende substituir a ação do Estado, a sua dinâmica deve ser complementar; é fruto das insuficiências e dos limites da atuação do mercado.
Mas independentemente da vontade e das boas ações humanas, o denominado "terceiro setor" tem, na realidade, crescido em consequência das perversas políticas neoliberais. Com a "crise" do Estado de Bem- Estar Social (nos países centrais) e do Estado Desenvolvimentista (nos países periféricos), a ideologia do "terceiro setor" passa a ser funcional/ operacional às políticas do capitalismo neoliberal, ocultando as raízes estruturais do desemprego, da precariedade do trabalho, da pobreza e da indigência (MONTÃNO, 2002; SILVA, 2004, 2006).Os voluntários que atuam no denominado "terceiro setor" contra a fome e a miséria, só na aparência são livres cidadãos.
A questão fundamental é: sem romper com o modo de produção capitalista, será possível combater a indigência e construir uma nova sociabilidade humana por meio das ações do primeiro, segundo e terceiro setores?
Para Claus Off e a resposta é positiva. Uma nova sociabilidade será construída mediante uma sintonia fina entre o primeiro, segundo e terceiro setores. Atores coletivos da sociedade civil demarcarão as fronteiras e a relação entre o Estado, o mercado e o "terceiro setor". Todos comporão, de forma harmônica, um arranjo social novo e superior. Grande parte dos desempregados será cuidada pela solidariedade religiosa (1999, apud SILVA, 2006).
O estadunidense J. Rifkin também defende a tese da possibilidade de humanizar o capitalismo por meio da articulação dos três setores. Os donos do capital, as corporações, deverão reduzir a jornada do trabalho e investir em ações comunitárias solidárias. Para ele, com o crescimento do desemprego estrutural e da miséria, estamos diante de dois riscos: o crescimento da população carcerária e a emergência de ideologias políticas extremistas.
Só as ações do "terceiro setor" salvarão o capitalismo e a democracia (RIFKIN,1997). Como é evidente, o acelerado crescimento do chamado "terceiro setor" é fruto da lógica da acumulação ampliada do capital, do aumento da população que vive no inferno da indigência e que constitui o peso morto do exército de reserva - que, segundo R. Castel (1998), são os supranumerários, os não empregáveis considerados inúteis para o mundo.
Em 1988, na França, somente um estagiário em quatro, e um trabalhador precário em três encontraram um emprego estável ao final de um ano. Sendo assim, a expressão "interino permanente" não é um jogo de palavras.

Os Estados Unidos apresentam a vigésima taxa de mortalidade infantil do mundo e 5 milhões de sem-teto.

No Brasil, por exemplo, são gastos R$ 7 bilhões com 11,1 milhões de famílias integradas no Programa Bolsa Família, enquanto R$ 110 bilhões remuneram os poderosos detentores dos títulos da dívida pública. Entre janeiro de 2003 e outubro de 2006, as empresas transnacionais, sediadas no País, repatriaram nada menos do que US$ 18,9 bilhões, 112% a mais do que a era Fernando Henrique Cardoso (1998-2002).
O pauperismo e a indigência (superpopulação supérflua) da América Latina e do "terceiro-mundo" somente serão superados com a construção de uma nova sociabilidade humana livre da lógica da acumulação, do desenvolvimento das forças destrutivas e da dependência do capital mundial.
O assistencialismo, a mera caridade legal e a filantropia,práticas inerentes ao chamado "terceiro setor" e às políticas "pseudoliberais" (SARTRE, 1987) talvez possam, por algum tempo, "animar" parte da sociedade e amenizar o sofrimento humano como simples efeito curativo (KURZ, 1997).
Definição dos setores.
O pesquisador Rubem C. Fernandes (1994) assim demarca as fronteiras entre o "Primeiro, Segundo e Terceiro Setores": Como podemos observar, definido pelos seus fins, o denominado "terceiro setor" é composto por agentes privados que buscam a realização de objetivos coletivos e/ou públicos. Desta forma, há, segundo esse autor, clara coincidência com os objetivos do Estado.
O segundo setor é organicamente composto por agentes que buscam objetivos privados, ou seja, orienta-se, primariamente, pelos interesses do mercado, pauta-se pela competição e pelos lucros. Quando os agentes estatais buscam fins privados encontram-se no espaço da corrupção. Dito de outra forma, as condutas pautam-se pelas "políticas de favores", pelo clientelismo, nepotismo e personalismo.
Afirma Fernandes (1994) que o "terceiro setor" denota um conjunto de organizações e iniciativas privadas que visam à produção de bens e serviços públicos. Este é o sentido positivo da expressão. Bens e serviços públicos, neste caso, implicam uma dupla qualifi- cação: não geram lucros e respondem a necessidades coletivas. "O conceito é certamente amplo e passível de qualificações sob diversos aspectos. As variações ocorrem, e os casos fronteiriços suscitam disputas polêmicas, como acontece com qualquer classificação".
As pesquisas do Observatório Urbano das Nações Unidas (ONU) alertam que, em 2020, a pobreza no mundo atingirá 45% do total de habitantes das cidades.

MAS NEM COMO efeito curativo tem cumprido sua promessa de incluir no mercado formal os desempregados. A produção em escala de trabalhadores precários no terceiro-mundo e na América Latina tem sido acelerada pela aplicação dos Planos de Ajustes Estruturais (superávit fiscal, redução do déficit da balança comercial, desmontagem da previdência, liberalização financeira e comercial, [des] regulamentação dos mercados e a privatização das empresas estatais) "recomendados" pelo Banco Mundial. As pesquisas do Observatório Urbano das Nações Unidas (ONU) alertam que, em 2020, a pobreza no mundo atingirá cerca de 45% do total de habitantes das cidades.
Em Lagos, Nigéria, a classe média desapareceu, o lixo produzido pelos poucos e cada vez mais ricos compõe a cesta de alimentos que frequenta a mesa dos trabalhadores pobres. No Brasil, o denominado mercado informal já atinge mais de 51% da população, na América Latina, 57% e na África, 95% (DAVIS, 2004).
Dificilmente os agentes e os pesquisadores universitários que apoiam as ações do "terceiro setor" perguntam quais são as origens históricas e estruturais da pobreza e da miséria dos países dependentes. É preciso não abandonar a visão de totalidade social e considerar que o local não pode ser entendido como divorciado do mundial e, principalmente, da livre presença das transnacionais e das transações financeiras globais que, junto com os Programas de Ajuste Estrutural (PAEs), recomendados pelo Banco Mundial, provocam devastadores ciclones sociais (DAVIS, 2004; MÉSZÁ- ROS, 2006).
Muitas empresas praticam o denominado "marketing do bem" e a "solidariedade que aparece"
Atualmente, cerca de 180 milhões de pessoas estão em evidente situação de desemprego aberto. Mesmo nos Estados Unidos da América, lócus privilegiado das ações ditas solidárias, o "terceiro setor" não superou os problemas sociais: hoje, eles possuem a 20ª taxa de mortalidade infantil do mundo, 1/3 das crianças em idade escolar está sem vacinas básicas, 31 milhões de seres humanos não têm cobertura de saúde, há 5 milhões de sem-tetos, etc. (PETRAS,1996).
As ações locais, com ou sem apoio das corporações e do Banco Mundial, são limitadas e não questionam as raízes estruturais do desemprego, da pobreza e da precariedade do trabalho. Muitas empresas, na realidade, enquanto praticam o denominado"marketing do bem" e a "solidariedade que aparece" (BUCCI, 2004), exploram ao máximo os seres humanos e os recursos naturais da América Latina e do terceiro-mundo.
Muitas destas ações corporativas têm por objetivos claros "educar" lideranças rebeldes e prevenir a emergência de lutas sociais radicais. "São proponentes de novos contratos que restabelecem vínculos de solidariedade transclassistas e comunidades pensadas com inteira abstração dos "novos" dispositivos de exploração do trabalho (NETTO, 2005), a "flexploração" e a terceirização dos operários (SILVA, 2004). Será possível realizar, no século XXI, a utopia da cidadania plena - igualdade, fraternidade e liberdade - no interior da ordem social capitalista contemporânea?

Portal Ciência e Vida (Revista Sociologia Nº 23)












domingo, 14 de junho de 2009

Antropologia - Sociologia da emoções


Antropologia

Sociologia das emoções

Mais do que uma questão meramente biológica, as emoções podem ser analisadas sob o ponto de vista socioantropológico. O sentimento como fenômeno resultante de processos sociais.



Por EMERSON SENA DA SILVEIRA é antropólogo, doutor em Ciência da Religião (Univ. Fed. de Juiz de Fora - MG) e pós-doutorando em Antropologia (CNPq-PPCIR-UFJF). Autor do livro Corpo, emoção e rito: Antropologia dos carismáticos católicos (Porto Alegre: Armazém, 2008). Contato:mailto:emerson.pesquisa@gmail.com


As emoções entre as mulheres e os homens despontam nas revistas científicas e não científicas como objeto da Psicologia, da Biologia, da Neurologia e da Psiquiatria. Há muitos escritos abordando a natureza inata das emoções, o caráter genético de certos comportamentos emocionais (ódio, amor, inveja) ou, ainda, a profundidade, a manipulação ou a perversão do sentimento.
Alguns livros, oriundos da literatura erudita de autoajuda (Por que os homens mentem e as mulheres choram?), apresentam argumentos das ciências biológicas e da saúde sem o necessário debate e confronto com outras pesquisas e com as ciências sociais/humanas, repetindo, assim, ideias batidas e sem criatividade.
Paralelamente, o senso comum consagra esta divisão de tarefas emocionais: aos homens caberia a razão prática e o controle emocional, e às mulheres a emoção expandida e a paixão. Nada mais falso do que essa imagem, apesar das afirmações recentes da Psiquiatria e das ciências médicas ao "descobrirem" o poder dos hormônios ou a diferença das estruturas cerebrais.
Infelizmente, os sentimentos têm sido reduzidos a uma questão pessoal ou meramente biológica quando, na verdade, é possível falar de emoção entre classes sociais, gerações e outros agrupamentos sociais.
O sociólogo Norbert Elias (1897-1920), nos livros O processo civilizador e Sociedade de Corte, apesar de não construir uma Sociologia das emoções como campo científico, propõe no âmbito de uma "educação civilizatória", reflexões em que os sentimentos estão associados às formas civilizacionais assumidas pelas sociedades ao longo da história.
Assim, se pudéssemos transportar pessoas que viveram em outras épocas e civilizações para uma viagem no tempo, perceberíamos toda uma gama de sentimentos muito diferentes, mas intensos. Tomemos, por exemplo, o hábito, no Brasil Império, de colocar escarradeiras na sala para recolher o pigarro dos moradores e visitantes. Isso causaria nojo aos homens e mulheres contemporâneos, da mesma forma que certos hábitos atuais suscitariam horror, vergonha e ódio nos homens e mulheres do Brasil naquela época.
Dessa forma, para Norbert Elias, o desenvolvimento da noção de civilização na Europa, com toda sua sustentação social e econômica, correspondeu, simultaneamente, ao aumento do sentimento de vergonha e do nojo e da tendência de esconder, nos bastidores da vida social, a causa desses sentimentos.
A ideia de refinamento dos costumes, do autocontrole emocional e da higiene pessoal e pública surge como ideal da civilização ocidental, ampliando a fronteira entre privado e público, bem diferente dos costumes, e óbvio, dos sentimentos vividos na Idade Média.
Por isso, é possível, sem menosprezar as investigações das ciências médicas sobre o peso das estruturas biológicas e genéticas, afirmar que os sentimentos e suas formas de se manifestar são também elementos sociais, estruturantes da forma como interagimos, presentes na virulência dos preconceitos sociais ou na suavidade da ternura a dois.
Porém, a sisuda Sociologia continental ou europeia quase não deu atenção direta a esse aspecto fundamental da vida em sociedade. Não era a preocupação central de Durkheim (1858-1917), Weber (1864-1920) e Marx (1818-1883) (consagrada "trilogia" das Ciências Sociais), mas é importante notar que, apesar de não haver uma preocupação direta com as emoções, é possível ler, nas entrelinhas de seus escritos, ou até mesmo em textos "menores", reflexões bastante expressivas.
É possível perguntar, a partir das questões suscitadas por uma Sociologia das emoções, como os autores "clássicos" resolveram a questão da subjetividade no arcabouço teórico que construíram.
Durkheim, acusado (ou elogiado) de ser o "pai" do positivismo nas Ciências Sociais, escreveu textos e livros nos quais aborda uma "Sociologia do simbólico". Dentre eles está o relativamente pouco conhecido As formas elementares da vida religiosa, um dos últimos livros publicados. A leitura desse livro relativiza o rótulo de "pai do positivismo sociológico". Durkheim, ao analisar os rituais das tribos australianas (sua dinamogenia), por meio de relatos de viajantes e missionários, coloca a emoção como parte indissociável da estrutura social. O ritual de celebração dos totens tribais teria como tarefa essencial perpetuar na memória dos homens a emoção original que os mobilizou e os fundou como sociedade. Em outras palavras, a emoção é resultante do estado de sociedade, condição sem a qual o homem não pode existir. Já no livro O suicídio, Durkheim apresenta os sentimentos, emoldurados por sua Sociologia, como fenômenos resultantes de processos sociais amplos de solidariedade e anomia, decorrentes da divisão social do trabalho.
Próximo a essa perspectiva "externalista" e estrutural, situa-se Karl Marx, para quem a individualidade psicológica e as emoções (raiva, inveja, ira) são frutos das relações de produção e das forças produtivas. As classes sociais e os conflitos decorrentes da guerra gerados entre as mesmas caracterizariam os sentimentos, determinados pela marcha histórica da "luta de classes".
A emoção deveria ser tratada sob o aspecto das diferenças entre classes sociais, gerações e outros agrupamentos
Para Durkheim e Marx, o eu individual ou o self, não existem como expressão concreta, mas como expressão de estruturas e de coletividades abstratas.
Em Weber, o austero puritano, tipo ideal que emerge das páginas da Ética protestante e o Espírito do Capitalismo, é uma figura na qual o controle das emoções é o ápice de um processo psicossociológico. O senso de frugalidade e do dever está relacionado, intimamente, à emoção e às formas de contê-la. O desfrute emocional será obtido, paradoxalmente, do esforço de autocontrole. Alguns irão dizer: "nada é mais prazeroso do que a sensação do dever cumprido". Isso é também uma forma emotiva.
Para Weber, a evolução das éticas religiosas que embasam as religiões mundiais resulta na multiplicidade de formas de explicação dos sofrimentos como o mal e a dor. Essas tentativas, chamadas de teodiceias, orientam as ações dos indivíduos. Por elas, é possível compreender, por exemplo, o porquê da serenidade de um budista diante da morte iminente, a sua extrema compaixão por qualquer forma de vida ou o orgulho triunfante do puritano ao trabalhar e buscar, na poupança e no seu reinvestimento em atividades "produtivas", respostas às suas angústias.
Poucos foram os sociólogos que, na virada do século XIX e início do século XX, dedicaram-se às pesquisas sobre as complexidades do sentimento humano. Dentre eles, citamos George Simmel (1858-1918) e Marcel Mauss (1872-1950), sobrinho de Émile Durkheim.
De Simmel (2006), temos reflexões muito interessantes no livro Filosofia do amor, uma reunião de diversos ensaios em que é analisado o papel do dinheiro na relação entre os sexos e o amor, consagrado como o mais nobre sentimento que homens e mulheres podem expressar. Com rara sensibilidade, Simmel traça uma trama conceitual em que, Sociologia e Filosofia, dialogam entre si. Simmel (2006, p. 117), dentre outras coisas, analisa os paradoxos do amor: "o milagre do amor é justamente não abolir o ser-pa-ra-si nem do eu nem do tu, fazer dele inclusive a condição que permite essa supressão da distância, esse fechar-se egoísta em si mesmo do querer-viver. Isso é algo totalmente irracional, que se subtrai à lógica das categorias habitualmente válidas".


DE MARCEL MAUSS (OLIVEIRA, 1979) temos estudos criativos, dentre os quais o pequeno texto A expressão obrigatória de sentimentos, publicado em 1921, que ajuda a compreender a emoção como uma totalidade em que aspectos fisiológicos, psicológicos e sociais estão fundidos numa só realidade ou totalidade. Analisando rituais orais funerários (choros, gritos, berros cantos, etc.) de populações tribais da Austrália, Mauss (OLIVEIRA, 1979, p.146) afirma: "Não só o choro, mas toda uma série de expressões orais de sentimentos não são fenômenos exclusivamente psicológicos ou fisiológicos, mas sim fenômenos sociais, marcados por manifestações não espontâneas e da mais perfeita obrigação".
Ao analisar outras épocas e civilizações percebemos que os sentimentos se transformam
Nada mais falso do que atribuir aos homens sentimentos que levem apenas ao controle emocional, e às mulheres a emoção expandida e a paixão. os sentimentos não podem ser reduzidos a uma questão pessoal ou meramente biológica
Emoções enlatadas
O amar, o odiar, o invejar são atitudes e linguagens em que o social é construído. Esses sentimentos são linguagens "embrulhadas" pelos meios de comunicação (TV, rádio, internet), experimentadas nas extenuantes batalhas de vários atores sociais antagônicos e cruéis, contendores, são os meios que usamos para viver.
Do ato de louvar ao Deus da fé à compra de um produto de beleza; do empunhar uma faca à mão estendida ao mendigo, a emoção emerge como campo da intersubjetividade dos homens e mulheres dos tempos idos e dos tempos atuais. Na música ou na guerra, na lida diária ou nas celebrações esportivas, nas festas ou nos teatros, os sentimentos são eixos da convivência entre pessoas, famílias, grupos sociais, tribos pequenas e correntes planetárias de classes sociais.
Assim, segundo Mauss, alguns sentimentos, em especial os manifestados perante a morte e o funeral de uma pessoa, são "obrigações morais", mais do que simples manifestações espontâneas de tristeza individual. Os gritos e cantos funerários são necessários porque só o grupo pode entendê-los. Conforme Mauss (OLIVEIRA, 1979, p. 151): "é mais do que uma manifestação dos próprios sentimentos, é um modo de manifestá-los aos outros, pois assim é preciso fazer. Manifestar-se a si, exprimindo aos outros, por conta dos outros. É essencialmente uma ação simbólica".
Um destaque pode ser feito para a Sociologia norte-americana, especialmente em sua vertente microssociológica, por trazer novas abordagens ao estatuto do sentimento. Destaca-se Erving Goff man (1922-1982) e seus trabalhos sobre estigmatização social e vergonha. Num famoso estudo (Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: Zahar, 1982), Goff man analisa depoimentos de pessoas que tiveram a face dilacerada, por acidente ou por questões congênitas, e conclui que a face está intimamente ligada à própria dignidade. Perdê-la conduz as pessoas à humilhação, com todos os sentimentos associados: baixa autoestima, autorrejeição, dor moral intensa e vergonha.
Para Goff man, cada pessoa trava uma luta permanente para manter a sua face/dignidade ao empreender a "gerência da impressão" ou tentativa de controlar as impressões de si e do outro sobre si. Essas tentativas podem ser compreendidas como "representações do eu na vida cotidiana" ou dramaturgias interativas. Mas a "manipulação" das impressões falha com incômoda frequência, produzindo nas pessoas o embaraço (constrangimento) ou a humilhação, mesmo que esse controle das impressões esteja orientado para manter ou recuperar a face/ dignidade de outra pessoa.
A flexibilidade permitida pelos relacionamentos em rede afetou a capacidade das pessoas de cultivarem relacionamentos, comunitários e pessoais, de longo prazo e de aceitarem os fracassados socialmente
EMBORA O FOCO do trabalho não seja a emoção como objeto distinto, recortado e explícito, outra importante contribuição vem da Antropologia norte-americana, especialmente da chamawda Escola de Cultura e Personalidade. No interior das reflexões suscitadas por essa escola são formulados estudos que fornecem uma "agenda forte" ao importante estatuto do sentimento na vida social. Alguns pensadores, dentre os quais as antropólogas Ruth Benedict (1887-1948) e Margaret Mead (1901-1978), abordaram a interface entre os sistemas culturais e as personalidades.
A ideia de refinamento dos costumes e do autocontrole emocional surge como ideal da civilização ocidental
Os sentimentos se transformam com o tempo: se antes espartilhos apertados significavam beleza e status, hoje, tais vestimentas causariam riso e horror às mulheres
Ressaltamos dois estudos clássicos dessas antropólogas: O crisântemo e a espada, de Benedict, e Sexo e temperamento em três sociedades primitivas, de Mead. O primeiro trata da cultura japonesa e a forma como as emoções da honra e da vergonha são construídas. Nesse sentido, o próprio título do livro remete a símbolos extremamente importantes para os japoneses e, por isso mesmo, carregados de densidade emotiva: o crisântemo associa-se à apurada preocupação estética e a espada, à índole guerreira. O segundo aborda as noções de gênero (masculino e feminino) e os temperamentos associados, desconstruindo a atribuição ingênua de certos comportamentos a homens e a mulheres por conta de suas diferentes estruturas biológicas.
Outro famoso livro de Mead, Adolescência, sexo e cultura em Samoa, embora sofra sérias críticas metodológicas que o colocam em dúvida (os informantes e seus dados são questionados), propõe questões muito pertinentes para uma Sociologia e uma Antropologia das emoções.
Outros estudos de Benedict distinguem culturas dionisíacas (centradas no êxtase, na expansão dos sentimentos, na valorização da espontaneidade) e apolíneas (estruturadas no desejo de moderação, na extrema contenção e regulação).
Um dado interessante é que dentro das pesquisas dessa escola é perceptível o diálogo, às vezes tenso, com a Psicanálise freudiana que aprofundou a compreensão da dimensão psicológica do desejo e do afeto humano. Só para lembrar, um tema que acirrou debates, e ainda acirra: a suposta universalidade do complexo de Édipo, defendida pela Psicanálise e relativizada pela Antropologia.
O livro de Mead (Adolescência, sexo e cultura em Samoa), situado no quadro dos debates entre Psicanálise e Antropologia, parte da seguinte questão: a rebeldia e a angústia da repressão sexual entre os adolescentes norte-americanos são características da personalidade na cultura ou são elementos psicobiológicos universais válidos para qualquer adolescente, em qualquer cultura?


ANALISANDO AS PRÁTICAS sexuais de adolescentes de Samoa, Mead argumenta que as angústias da adolescência não são universais. Segundo a antropóloga, a passagem da infância à adolescência em Samoa era uma transição suave, sem as tensões, ansiedades e confusões observadas nos adolescentes norte-americanos.
Hoje, porém, muitos antropólogos pós-modernistas criticam o ocultamento das relações de poder e da política na Antropologia e nas ciências humanas e sociais. Dizem que a pesquisa de Benedict foi financiada pelo Ministério da Guerra dos EUA. Para essa corrente antropológica, a emoção, nesse sentido, é incorporada a uma agenda "política". O sentir não poderia, portanto, ser dissociado das "estruturações" do poder, do colonialismo e de outras configurações do político.
Rituais de morte, como o funeral, são mais do que simples manifestações, são, para Marcel Mauss, "obrigações morais"
Mais recentemente, um estudo brilhante do sociólogo francês David Le Breton (2007) retoma tradições filosóficas como a fenomenologia de Merleau-Ponty e analisa a relação entre as formas de perceber/sentir e as estruturas sociais. Cada sociedade configura um modelo sensorial próprio, singularizado pelas e nas experiências e intervinculações dos indivíduos. Para Le Breton (2007), qualquer tipo de socialização é também a disciplina/domesticação da sensorialidade e de suas características biopsicológicas.
As percepções olfativas, visuais, auditivas ou gustativas são marcas na memória, feitas pela emoção e articuladas pelos indivíduos no mundo social. Os dados fornecidos pelos sentidos são registrados por eventos significativos na vivência do indivíduo e, assim, reconstituem e instituem a temporalidade. A rememoração ou evocação de diversas emoções possíveis atrela-se, portanto, à memória. Nesse sentido, é interessante perceber que memória, emoção e sentido (paladar, olfato, audição, etc.) são, visceralmente, interligados. Sentir um perfume e ouvir uma canção pode evocar lembranças e, com elas, sentimentos. Por isso, o nexo entre memória e emoção é importante.
Pode não ser intencional, mas atitudes repetitivas de atender ao telefone durante uma reunião ou um encontro, por exemplo, redundam em humilhação e aumentam a percepção desse sentimento por parte da pessoa "desprezada"
Mas há uma polêmica "no ar". Hoje, sabe-se que é possível "plantar" memórias inexistentes nos indivíduos. Em 2009, um grupo de cientistas americanos conseguiu, a partir de técnicas de indução, que alguns indivíduos realmente acreditassem, piamente, em lembranças completamente impossíveis e falsas. No caso da experiência desses cientistas, os indivíduos alegaram que, durante a infância, foram lambidos pelo cachorro Pluto, do desenho animado de Walt Disney, em carne, pelo, osso e saliva. E as emoções? Corresponderam a essa memória? Não se sabe.
Para Le Breton, os caminhos da "sociabilidade sensória" variam de acordo com cada tipo de sociedade. Para provar a existência de modelos sensoriais distintos, Le Breton (2007) analisa como no Mundo Ocidental Moderno o olhar adquiriu supremacia ante outros sentidos.
Historicamente, a ideia de individualidade relaciona-se à visão (LE BRETON, 2007) e se consolida na Renascença. Por exemplo, pela difusão e ascensão, na pintura, dos retratos e autorretratos. Neste momento histórico, a sociedade ocidental celebra a visão e elege, simultaneamente, a cegueira como o pior estigma. É a visão o sentido eleito para ser o traço diferenciador dos indivíduos, ou seja, aquilo que separa o "eu", do "nós".


As percepções dos cinco sentidos são marcas na memória, feitas pela emoção dos indivíduos no mundo

O sentido da visão passa a ser associado, dessa forma, à verdade, e daí aos sentimentos. As lágrimas serão vistas como cristalizações da dor, do sofrimento, da revolta e da indignação do indivíduo em face do fardo da existência ou da opressão do sistema. Mas o amor e a solidariedade passam também pelo olhar. A paixão acontece no olhar-se. Aos outros sentidos, é reservado um papel secundário na estruturação das identidades sociais e individuais. Destaca-se aqui, o tato, ligado à sensualidade e ao erotismo, dissociados, ou domesticados, em muitas visões religiosas, do amor. A visão é percebida, então, como a "janela interior" (os olhos "revelam" a "interioridade", as "verdadeiras" emoções) e eleita como o elemento mais nobre dos sentidos. Porém, muitos povos não ocidentais escolheram outros sentidos, o olfato e a audição, por exemplo, como os mais nobres, e conduziram suas relações sociais e identitárias com base nessa escolha.
No Brasil, antes mesmo da formação da Sociologia das emoções como campo disciplinar, emergiram reflexões que tratavam de temas, tangenciavam ou mesmo abordavam o estatuto do sentimento. Para citar dois autores, dentre muitos, Gilberto Freyre (1900-1987) e Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982).
Sociologia da Emoção no Brasil
O Grupo de Pesquisa em Antropologia e Sociologia da Emoção (GREM), da Universidade Federal da Paraíba é um dos raros núcleos de estudos e pesquisas brasileiros sobre emoção. Fundado em 1994, é liderado por Mauro Guilherme Pinheiro Koury e mantém um blog (http://gremsociologiaantropologia.blogspot.com//) e a Revista Brasileira de Sociologia das Emoções. Dentre as linhas de pesquisa do grupo estão os rituais da morte, luto e sociedade e medos urbanos, violência, ruínas e construção das cidades.
Por abordar os costumes, hábitos e o cotidiano na Casa Grande e na Senzala, nos Sobrados e Mucambos, e entre a Ordem e o Progresso, a dimensão do afeto e da sexualidade emergem com mais intensidade em Gilberto Freyre. Dentre muitos exemplos de como Freyre analisa as relações sociais, pode-se citar o sentido do olfato, atrelado a sentimentos de inferioridade, nojo, embaraço, alegria ou amor. Freyre (2003, p. 418) diz: "Nos perfumes é que se prolongou, até quase nossos dias, a hierarquia da sociedade patriarcal brasileira não só quanto ao tipo de mulher - certos perfumes só se compreendem em 'cômicas' ou atrizes, nunca a senhoras honestas, outros só em mulatas, nunca em brancas finas - como quanto a classes e, menos rigidamente, quanto ao sexo". Em muitas outras análises saborosas, Freyre constrói um panorama cultural da identidade brasileira, emotiva por "nascimento" histórico-cultural.
A ideia de individualidade relaciona-se à visão e se consolida na renascença, na pintura dos retratos e autorretratos
Sérgio Buarque de Holanda, no famoso capítulo 4 do livro Raízes do Brasil, cujo título é O homem cordial constrói uma abordagem diferente, embasada num modelo em que, as estruturas sócio-históricas brasileiras são repensadas. Perdidos entre as formas tradicionais de dominação, patrimonialismo e patriarcalismo, os padrões civilizacionais modernos (cultura democrática) não vingaram no Brasil. Para Holanda, os padrões familiares contaminaram a estrutura social brasileira, fazendo da polidez uma tênue epiderme que disfarça a defesa dos interesses do clã ou do grupo ao qual se pertence por laços de intimidade ou por laços sanguíneos. As estruturas formalistas, racionais e burocráticas advindas com a modernidade, não conseguiram cortar esses laços de compadrio. Por isso, de alguns políticos se diz: "guardam mágoas em geladeira". E surgem alianças políticas, as mais esquisitas possíveis, bem como "adversários" que não deveriam se odiar, por se situarem dentro de uma estrutura ideológica e racional similar.
Cabe citar Zygmunt Bauman e seu livro Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Bauman analisa a "flexibilidade" permitida pelos relacionamentos em rede ou na internet. Esses relacionamentos nascidos nas "entranhas" cibernéticas das tecnologias de comunicação são criados e desmanchados com extrema rapidez e facilidade. Isso afetou gravemente, para Bauman, a capacidade de cultivar relacionamentos de longo prazo e, por extensão, os vínculos familiares, comunitários, amorosos e até mesmo a capacidade de aceitar o estrangeiro e o estranho. O desenvolvimento gigantesco do consumo e dos sistemas de comunicação eletrônicos (Messenger, chats, comunidades virtuais, etc.), tornou frágil a capacidade social de cultivar emoções e sentimentos necessários aos vínculos de longo prazo (confiança, paciência, tolerância e outros).


Alguns padrões emotivos trazem uma tênue epiderme que disfarça interesses escusos de muitos grupos sociais


A PERDA DA CAPACIDADE de cultivo de longo prazo, substituída pela emoção da velocidade e da "adrenalina" de conectar/desconectar, traz frustração e amargura, intensifica a insegurança e, por decorrência, a sensação de medo e abandono.
Infelizmente, uma forma de domar a crescente emoção social do medo, defendida pelos governos e sociedade dos EUA, Europa e de outros países, é a de projetar, nos imigrantes e refugiados, sentimentos de pavor e rejeição. Isso contribui para o isolamento social e aprofundamento de comportamentos agressivos e reativos, com toda gama de sentimentos associada: ódio racial, surtos de ira, indignidade e injustiça, abandono e vergonha.
Governos e sociedades projetam nos imigrantes e refugiados, sentimentos de horror e pavor, o que contribui para o isolamento social e aumento do terrorismo
ALGUNS SOCIÓLOGOS criticam a severidade dos juízos de valor em Bauman (2004). Haveria, segundo eles, um pessimismo injusto em parte, a respeito da relação entre emoção, meios de comunicação eletrônicos e padrões democráticos de civilização.
Por fim, é preciso frisar que na produção sociológica antes da década de 1970, não havia um campo delimitado e com produção específica chamado de "Sociologia das emoções". Koury e outros brasileiros serão praticamente os primeiros a realizar reflexões e pesquisas sobre a dor, o luto, a injustiça e o medo, dentro de uma "agenda de pesquisas" da Sociologia das emoções, emoldurada por abordagens e contribuições de inúmeros sociólogos e antropólogos, norte-americanos e europeus, dentre eles William Reddy.
Como se vê, há um "mundo" de autores e pesquisas a serem explorados no campo da Sociologia das emoções ou em autores que escreveram sobre temáticas próximas a esse campo. Mas isso é assunto para outros artigos.


Portal Ciência e Vida (Revista Sociologia Edição nº 23)